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Adeus à rua onde se respira fumo e as chamas são vizinhas Por Francisco Martins

A baía de São Francisco é vigiada por um céu do qual não sobra uma réstia de azul. O fumo impede que, junto à ponte que liga as duas cidades, Oakland consiga olhar para São Francisco com a nitidez de outrora. Uma densa nuvem divide o espaço entre a superfície terrestre e o sol. O laranja apodera-se da paisagem, criando um cenário em tudo semelhante ao que os livros costumam descrever como um inferno.

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Decorria o ano de 2018. Pelos Estados Unidos, deflagraram mais de 58.083 incêndios, de acordo com a National Interagency Fire Center, que queimaram 3.548.078 hectares, uma área que mesmo traduzida para campos de futebol extravasa os limites do concreto. Como especifica o Departamento de Censos dos Estados Unidos, 8.527 desses fogos arderam no estado da Califórnia.

Paradise encontra-se em Sacramento, no norte californiano. Em tempos, já foi mais do que aquilo que é hoje. Antes, circundava a pequena localidade um imenso arvoredo que preenchia de verde a fresca paisagem ao largo de quilómetros.

Era cedo e ainda poucas voltas tinham dado os ponteiros do relógio no dia 8 de novembro de 2018. A vegetação estava seca por a chuva não ter feito a visita prometida pela chegada do outono e a humidade era baixa, em contraste com o nível da temperatura. Os efeitos das alterações climáticas tornaram as árvores no combustível ideal para que o fogo pincelasse toda a localidade com a cor das cinzas. O vento, consistente e forte, fez com que as chamas, em vez de subirem em coluna, fossem arrastadas lateralmente ao ritmo de quem assiste à metamorfose da vida e bens em labaredas. Quatro horas foram suficientes para destruir Paradise.

Ao aperceberem-se da velocidade a que o incêndio avançava, os habitantes tentaram deixar a localidade. Pôs-lhes travão nas intenções que o espaço que existia para árvores, antes de arderem, faltava para estradas que permitissem a elaboração de um plano de fuga eficaz em caso de catástrofe. O resultado foi um amontoado de carros em Camp Fire, a única estrada que permitia sair da zona e que se tornou na última localização de alguns dos fugitivos.

Jim Wilson/The New York Times

Seguiram-se 17 dias de incêndio. Após a avaliação de peritos, o California Department of Forestry and Fire Protection (Cal Fire) determinou que o incêndio fora causado por cabos de eletricidade localizados na região pertencentes à Pacific Gas and Electricity (PG&E).

Segundo dados do Cal Fire, arderam 62.053 hectares. Ficaram reduzidas a pó 18.804 estruturas. 30 mil pessoas ficaram desalojadas e 85 não voltaram a precisar de ter onde morar.

Os ventos encarregaram-se de levar as consequências para outros sítios.

Jim Wilson/The New York Times

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Aos 36 anos, no dia 1 de março de 2021, Claire Haas chegou a Lisboa. Veio para Portugal em busca de uma vida melhor com Ina, a filha de dois anos, e Andrew, o marido. Continua a trabalhar, à distância que as fronteiras separam, no maior grupo comunitário da região a que antes pertencia.

O processo para deixarem para trás a vida que tinham não foi fácil. “O meu marido demorou muito tempo a ter contrato de trabalho. Passaram quatro meses até termos o passaporte da Ina. Ela nasceu em casa e tínhamos que fazer um processo muito difícil para ter o certificado de nascimento, porque, por causa da pandemia, estava tudo fechado. Depois, foi esperar que o SEF tratasse das coisas. Demorou, porque ora estava aberto, ora estava fechado”, relata.

Claire é formada em Música. Andrew é investigador no Instituto de Etnomusicologia da Universidade NOVA de Lisboa. No passado, ambos tocavam na mesma banda: Claire trompete, Andrew trombone. Além de um projeto dedicado a apoiar irmãos de pessoas com deficiência que se recusa a abandonar, está a preparar um projeto para tocar música em parques.

Para já, arrasta pelo Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian o carrinho de bebé da filha que vai deixar na creche. O movimento das rodas provoca um som áspero no chão que, na noite anterior, se molhara com os primeiros aguaceiros do inverno. Claire passa a mão pela cabeça para sentir o efeito dos miúdos pingos de chuva no cabelo curto. Limpa os óculos, também eles molhados, à camisola. A roupa grossa agasalha-a do frio que se faz sentir, mas não é capaz de lhe esconder o tom de pele pálido, nem o sorriso tímido.

Claire nos jardins de Lisboa

Do local de onde veio, precisava de apanhar um autocarro que só passava de hora a hora para encontrar um pedaço de natureza. “Lisboa é uma cidade com muitos espaços verdes. Estamos sempre a descobrir um novo”, entusiasma-se. Enquanto caminha, a alegria conquista-lhe espaço no rosto e a energia que os passos lhe gastam é reposta a cada brisa de ar puro que respira.

“Gostamos muito de Lisboa. É uma cidade que tem tudo o que precisamos. Tem transportes públicos muito bons, mas também podemos andar para todo o lado a pé, se quisermos. Não precisamos de ter carro. Temos bicicletas e é fantástico, porque há imensas ciclovias. É uma cidade incrível para usar bicicleta. É possível que fiquemos aqui o resto da vida”, diz deslumbrada.

Ina nasceu antes da mudança de país. Foi quem, tentando gritar, não precisou de emitir um único som para fazer soar o alarme.

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A PG&E foi declarada culpada pelas mortes ocorridas no incêndio em Paradise e abriu falência devido ao esforço financeiro que o pagamento de indeminizações obrigou a empresa privada a fazer. Ainda assim, as consequências só se espalharam mais.

Os ventos levaram o fumo até à zona da baía de São Francisco. Oakland, mesmo que a uma distância de Paradise semelhante à que separa Lisboa e Porto, foi uma das cidades onde as partículas do que tinha sido queimado entraram sem bater. Para 17 dias de incêndio, os restos de Paradise reservaram um mês de estadia nos ares da cidade.

O fumo escurecia o céu, mesmo quando a noite dava lugar ao dia. Bem antes da Covid 19 atacar, já se usavam máscaras nas ruas de Oakland e era recomendado confinamento, ainda que o comércio e os serviços mantivessem atividade.

Jessica Christian/San Francisco Chronicle

A Organização Mundial da Saúde alerta para os riscos da poluição atmosférica. A presença de partículas que entram com facilidade nos pulmões e no sistema cardiovascular pode ser causadora de doenças mortíferas, como derrames cerebrais, ataques de coração, obstruções pulmonares e infeções respiratórias.

Com a vida em risco, não pelas chamas, mas pelas consequências delas, a comunidade da zona da baía mobilizou-se para realizar uma ação direta de desobediência civil junto da sede da PG&E, em São Francisco. 200 pessoas participaram no protesto. Um grupo abriu as portas e os restantes participantes seguiram-no. Ficaram três horas junto da entrada dos funcionários. Entoaram palavras de ordem que a acústica do espaço se encarregou de amplificar. Estavam preparados para, em caso disso, serem detidos. Entre os organizadores estava Claire.

Claire, com o megafone, na ação de protesto (Paul Chinn/The Chronicle)

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“A PG&E estragou a minha vida. Eles são culpados pelo incêndio em Paradise, mas também por outros. Mataram 85 pessoas”, reclama agora sentada num banco do jardim, despindo o ar tímido que antes escondia a ativista que há em si. “Antes estava mais ligada a causas sociais do que ambientais, mas, naquele momento, senti que foi importante exigirmos atenção”.

“O capitalismo global é que está a causar as mudanças climáticas e vamos continuar a ter muitos lugares com problemas como incêndios, cheias ou secas. Isso já está a acontecer. A luta é a mesma em qualquer lugar. Temos que identificar quem são as empresas que estão a causar mais problemas e atacar ali. As empresas estão a fazer pressão sobre os governos que não podem fazer o que é necessário fazer contra as mudanças climáticas, porque se não vão ter problemas económicos”.

Claire Haas vivia em Oakland até que as alterações climáticas decidiram por ela que ali não podia mais ficar. A vegetação seca, devido à escassez de chuva, e a subida das temperaturas, provocada pelo aquecimento global numa zona já por si quente, servem de rastilhos aos muitos incêndios que assolam a região da Califórnia, dos quais o de Paradise é apenas um exemplo.

Quando o fumo lhe ofuscou a visão para o futuro, Claire começou a pensar em deixar os Estados Unidos. Ina tinha seis meses e ainda não conseguira ver o sol sem o filtro de uma nuvem escura de fumo por cima da cabeça. Certo dia, a intuitiva reação de choro a que os bebés recorrem sempre que algo lhes confronta as vontades falhou-lhe. “A Ina perdeu a voz, estava a chorar, mas não se ouvia nada”, conta a mãe, enquanto imita a expressão de horror que viu na filha no momento em que tudo acontecera, com as mãos junto da boca para tentar projetar o som e com os olhos cerrados denotando o esforço para emitir ruído audível. “Já antes tínhamos decidido sair dali, mas aí pensámos mesmo que era impossível mudar de planos”.

Como consequência dos incêndios, o estado da Califórnia chega com frequência a registar o pior Índice de Qualidade do Ar do mundo. “Não sabemos os efeitos na saúde a longo prazo. Uma vez, eu e o meu marido fomos tocar a um bar e a janela estava completamente aberta e senti o efeito depois... sabes?”, relembra.

Claire e a família ainda ponderaram experimentar outra cidade dentro dos Estados Unidos. New Orleans foi a primeira opção, mas saiu de equação quando receberem o relato de amigos, que também deixaram Oakland pela reduzida qualidade do ar, e que agora vivem na cidade. O furacão Barry, que tinha potencial para ter sido mais destrutivo que o Katrina, deixou a cidade sem eletricidade durante uma semana.

A segunda hipótese era Filadélfia, mas de lá chegou a Claire outro relato que a assustou sobre os efeitos do Barry. “Uma amiga minha tem uma filha um bocadinho mais velha do que a Ina que ia recomeçar o pré-escolar”. O regresso não aconteceu. O furacão destruiu o edifício. A escolha acabou por ser Lisboa.

“A Califórnia está a perder população pela primeira vez em décadas por causa das migrações climáticas. A cada ano, há um incêndio que é maior do que o anterior. Continuar a morar nos Estados Unidos seria muito mau e perigoso”.

"As empresas estão a fazer pressão sobre os governos que não podem fazer o que é necessário fazer contra as mudanças climáticas, porque se não vão ter problemas económicos”.

Claire é parte integrante dos 200 a mil milhões de pessoas que a Organização Internacional para as Migrações estima que, até 2050, se desloquem por motivos climáticos. A mesma organização aponta que, só em 2018, 62 milhões de pessoas se deslocaram por razões de ordem climática.

O Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados define “refugiados” como um estatuto atribuído a “pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições e cuja situação é tão perigosa e intolerável que devem cruzar fronteiras internacionais em busca de segurança nos países mais próximos por o regresso aos países de origem colocar a sua vida em risco”. O estatuto não inclui migrantes climáticos, pelo que estas pessoas, mesmo que incluídas no lote das migrações forçadas, não têm acesso a proteção jurídica e seja difícil contabilizá-las ou identificá-las.

Claire considera-se privilegiada por conseguir trabalhar e ter acesso a dinheiro. Ainda assim, nem todos os migrantes climáticos estão na mesma situação num mundo, em que, por vezes, é preciso correr atrás do céu azul.

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Francisco Martins
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