a coisa chama
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ato falho
quando a arte quebrou barreiras usando o bíceps
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reescrever o rompimento
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a cabra, a criança, o homem nu
uma praia. três personagens entre a morte e a eternidade. a cabra está morta, a criança olha para o animal, o homem nu mira o horizonte.
a foto foi tirada pela francesa Agnès Varda em 1954, numa tarde em que saiu de casa em Saint-Aubin-sur-Mer, pegou a câmera 13/18, aparelho tão enorme que os franceses chamavam de "quarto".
ela reuniu elementos vivos em torno da morte.
30 anos depois, Agnès volta à foto. dessa vez, usa a língua do movimento: grava um documentário curto chamado Ulysse, que é o nome da foto. que é o nome do menino na foto.
a artista resolve ir atrás dos personagens. descobre que estão vivos! apesar da cabra.
Agnès quer investigar o Tempo, quer saber como a memória se comporta. primeiro encontra com o homem nu [no filme, ele continua nu, embora sentado em seu escritório de diretor criativo da revista Elle].
o egípsio pelado, chamado Fouli Elia, pega a fotografia. lembra vagamente do menino, um desconhecido, lembra da praia, talvez da cabra.
Agnès avança, quer entrar por aquela janela memorial. mostra a Faouli outras fotos que tirou dele na mesma época [nesses retratos ele usava roupas].
F. Sim, lembro desta camisa, mas não lembro desta pessoa.
A. Que perturbador! Lembramos da roupa, mas não lembramos de quem éramos.
F. É porque eu não quero me lembrar.
[talvez por isso ele ande nu.]
Agnès chega a uma livraria, chama pelo dono. ele é Ulysse, o menino da praia. a esta altura um homem casado com filhos, Ulysse não lembra nada da foto, nem da cabra, muito menos do homem nu. seu desconforto é nítido. ele não gosta de estar numa imagem da qual não sabe absolutamente nada.
é como ser observado dormindo.
Agnès amacia a lembrança: mostra ao Ulysse adulto um desenho que Ulysse criança fez daquela mesma cena, naquela mesma tarde. a imaginação da criança sobre o fato. a foto que decidimos registrar em nós.
não, nada. Ulysse ainda não lembra sequer do desenho que fez. mas agora… espere um pouco. agora há alguma coisa ali. com a pintura nas mãos, uma faísca sai dos seus olhos… é como se chegasse em casa. está mais próximo de si mesmo.
há um lugar onde ele e sua criança interior estão juntos, um lugar só seu: a Imaginação.
o desenho sobre o acontecimento é parte dele, mais do que o próprio acontecimento. Agnès chega à conclusão de que cada um cria o seu próprio Tempo, mesmo que o real e o imaginário se confundam.
qualquer história ainda é uma lembrança, qualquer desmemória ainda é memória em algum lugar. basta que tenha acontecido o acidente: a criação. basta que olhemos no espelho. pelados ou não, somos o que escolhemos capturar do Tempo.
* [assim que a zine nasceu, a autora desapareceu] *