Um silêncio ensurdecedor Diariamente, mulheres e homens saem de casa sem saber o que o dia lhes reserva. Contudo, um breve passeio, um café numa esplanada ou uma viagem num autocarro podem tornar-se um pesadelo. Um toque na perna, um olhar perturbador, um comentário despropositado. O assédio é uma certeza no quotidiano de muitas pessoas: na sua maioria, mulheres.
No dia em que foi atacada, Carolina* saiu de casa a um domingo, às 17h30, para uma reunião que religiosamente não falhava. Quando terminou, por volta das 21h30, vestiu o seu casaco de inverno e começou a dirigir-se para casa. No caminho, que a estudante da Universidade de Coimbra (UC) sempre percorria, desbloqueou o telemóvel para ligar à mãe. “É nessa altura que sinto alguém a agarrar-me, atrás das costas, e tento virar a cabeça. Percebi que não conseguia, porque senti uma coisa fria no pescoço - era uma lâmina”, descreve a estudante de 25 anos.
Tal como na “Crónica de uma morte anunciada”, obra de García Márquez, começou-se por saber o final da história, neste caso, de uma sobrevivente. Combinámos um café para a nossa conversa. Enquanto a empregada chega com o troco, a jovem, natural do Porto, cala-se. Assim que vira costas, Carolina continua: “disse-me que queria que o acompanhasse até ao carro”.
Estavam sozinhos na rua, junto ao Departamento de Antropologia do Pólo I da UC. A estudante quis oferecer-lhe tudo o que tinha consigo – a carteira, o telemóvel -, mas o alegado agressor “não queria nada, queria que fosse com ele, apenas”. Surpreendeu-a o “discurso fluido e calmo”, o que a levou a achar que não seria a primeira vez que o alegado agressor praticava a ação.
Numa fração de segundos, “em pânico”, reagiu e, com a única parte livre do corpo - as pernas - pontapeou o rapaz. Com o susto, e ao mover os braços, fez um ligeiro corte na cara de Carolina com a lâmina, nunca deixando de lhe agarrar o pulso.
“O meu intuito era ganhar tempo, para que passasse alguém para pedir ajuda ou ele se assustar”, recorda Carolina, enquanto bebe o seu café, escondida atrás do seu cigarro. “Tive sorte”, desabafa, “porque, na altura, passou um carro”. O jovem assustou-se, pegou no telemóvel da estudante, e fugiu. A estudante amedrontada correu na direção oposta.
Segundo o Relatório Anual da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) de 2020, em média, 24 mulheres são vítimas de algum tipo de crime, por dia, enquanto, nos homens, esse número se reduz para quatro. Natália Cardoso, gestora do Gabinete de Apoio à Vítima (GAV) de Coimbra, adianta que o crime de violência doméstica “é o que tem maior expressão estatística e que ocupa a maior parte" do trabalho da associação. Aliás, confessa que os casos de assédio sexual “não nos chegam. Se chegam, é quando já houve outro tipo de violência mais gravosa”.
Até hoje, Carolina acredita que nunca saberá, “realmente, para onde me queria levar e o que queria fazer”. Assim que conseguiu afastar-se do local, regressou ao sítio onde tinha reunido com colegas, para pedir ajuda. “Queria chamar a polícia, para poder fazer queixa”, afirma, segura.
Quando chegaram as autoridades, a jovem recorda que lhe elogiaram a tranquilidade que aparentava. “Em nenhum momento consegui sentir pânico ou medo, apenas o instinto de sobrevivência”, recorda. Contudo, sentiu-se frustrada por não conseguir expressar nenhuma emoção ou chorar. “A ficha caiu dois dias mais tarde”, quando percebeu a gravidade do ataque que tinha sido alvo.
Segundo um relatório da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, divulgado em fevereiro de 2021, 1 em cada 3 europeus foram vítimas de assédio. Neste contexto, cabe o assédio moral e sexual, que podem ser perpetrados no local de trabalho. No caso português, apenas 24% dos inquiridos dizem ter sido vítimas de assédio, nos últimos cinco anos. No contexto ‘online’, a percentagem reduz para 4%.
Tal como Carolina, Sofia*, 20 anos, é estudante na UC. Num dos dias em que ia regressar a casa, na Guarda, como habitualmente, pediu um Bolt, para a levar à estação. Sentou-se no banco de trás e o condutor começou a fazer-lhe perguntas, que a deixaram incomodada.
Perguntou “se tinha namorado, se ia viajar sozinha”, relata, ainda indignada, via chamada telefónica. O condutor sugeriu que mudassem a rota da viagem. Num “misto de medo e raiva”, Sofia respondeu que tinha pessoas a seguir a sua localização, – uma das potencialidades das aplicações destes serviços - “como sempre”.
A estudante diz nunca se sentir segura, em Coimbra. O relato de uma amiga que sofreu uma tentativa de violação, em 2019, deixou-a alerta. No final da viagem, quando ia retirar as malas da bagagem, “o condutor aproveitou e passou a mão dele pelas costas e apalpou-me o rabo e dizia, aproximando-se:
“As coisas que eu te fazia…”
A jovem denunciou a situação na sua conta pessoal do Twitter e publicou a matrícula do carro do alegado agressor. Apesar de também ter sido insultada, Sofia acredita que agiu da melhor forma, pelo facto de “outras raparigas terem falado comigo e dito que cancelaram a viagem com ele. Ou que relataram outros episódios com a mesma pessoa, contando que as perseguia com o carro, enquanto buzinava, na Praça da República”, assinala. A estudante também contactou a empresa, via Facebook, que admitiu abrir um processo de averiguação interno e reembolsou o dinheiro da viagem.
O assédio sexual é “todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador”, de acordo com a APAV. Sara Paiva, psicóloga online, destaca que “qualquer tipo ou forma de assédio sexual pode ter impactos psicológicos muito prejudiciais”. As vítimas “podem sentir medo, ansiedade, raiva, desespero, humilhação, vergonha, culpa e solidão”, enumera, via e-mail.
A decisão de partilhar os episódios de assédio nas redes sociais é cada vez mais frequente. Recentemente, circulou nas redes sociais um vídeo de uma jovem a ser assediada por um condutor dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra. Natália Cardoso, quando questionada sobre as potenciais consequências da disseminação dos casos nas redes sociais, admite não ter a certeza dos benefícios. “Depende de como a informação é divulgada”, assinala.
A psicóloga Sara Paiva, Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, considera que “as redes sociais não constituem um meio adequado de denúncia”. Afinal, tornaram-se plataformas onde o assédio sexual também acontece. No entanto, podem ter um efeito educativo e “serem aliadas no que diz respeito à promoção da literacia junto de diferentes faixas etárias”.
A gestora do GAV de Coimbra acredita que algumas vítimas partilham os casos nas suas contas pessoais, “porque sentem que, como a justiça não vai ter a repercussão que gostariam que tivesse, é uma forma de criar empatia com pessoas que passaram pelas mesmas situações”. No entanto, destaca alguns riscos, como a “manipulação de informação” ou a “acusação de difamação”, bem como os insultos.
Uma das formas mais graves de violência sexual é o crime de abuso sexual de menores. No último ano, 292 vítimas, com idade inferior a 14 anos, recorreram à APAV, depois de sofrerem os abusos. Jéssica* tem agora 22 anos e, apenas com 20 anos, uma década mais tarde, percebeu que tinha sido vítima, quando era criança.
Aos dez anos, a jovem, natural do distrito de Santarém, frequentava uma ama com as irmãs de cinco e três anos, na altura. A ama tinha dois filhos. Um deles, um rapaz com cerca de 14 anos. “Não foi logo no início, mas um mês ou dois mais tarde, ele levava-me para uma cave, obrigava-me a despir, ele despia-se e obrigava-me a fazer coisas”, começa por contar, com a voz embargada.
Os abusos duraram mais de um ano. No início, Jéssica “não entendia que era errado”, porque a mãe e o padrasto “sempre se mostraram bastante sexuais”. À época, “não sabia com que idade era suposto começar, em que era suposto ser tocada pela primeira vez. Via como algo completamente normal”, recorda. Como tal, devido à sua inocência, não contou a ninguém.
Os abusos escalaram e, um dia, Jéssica chegou a casa com dores e a sangrar. “. Lembro-me de chegar a casa, estava a sangrar muito, estava a morrer de dores, mas não contei a ninguém”, relata, em surdina. Durante todo aquele tempo, “houve só medo”, até que, um dia, Jéssica disse que não.
E ter dito que não levou o alegado agressor a ameaçar as irmãs:
“Se não fores tu, ou é a Clara** ou a Vitória**”, as minhas irmãs, diz, ouvindo-se a mágoa na voz. “Então, eu continuei e senti que era obrigação minha”.
Aos 19 anos, Jéssica foi diagnosticada com bipolaridade. Numa das conversas com o psicólogo da altura, o profissional perguntou-lhe se tinha sido vítima de violação ou assédio. “Eu não estava a reconhecer, relembrei a história e foi aí que ele me fez entender que realmente tinha sido violada”, recorda. A partir daí, contou à mãe e ao namorado, que reagiram “com raiva”. Contar pela primeira vez a alguém, “não ajudou, porque só precisava de compaixão e carinho e comecei a relembrar”, confessa Jéssica, estudante da UC.
Hoje, a jovem continua a frequentar uma psicoterapeuta que a tem ajudado a lidar com a situação. “Estou mais confortável para falar da situação, mais assertivamente, porque já falei bastante com a minha psicoterapeuta sobre o que se passou”, assinala, confiante. Jéssica quis partilhar a sua história, para “sensibilizar as pessoas e transmitir algum conhecimento sobre uma realidade que pode ser evitada”. Quando era criança, apesar de não ter contado, lembra-se de ser uma “criança infeliz” e as pessoas “podem ficar mais sensíveis e atentas às situações”, acredita. Elogia o papel da APAV, mas, segundo a sua experiência, "o Serviço Nacional de Saúde precisa de formar mais os psicólogos" para lidar com as vítimas como Jéssica.
No dia a dia, muitas são as mulheres que são assediadas, independentemente do contexto. Natália Cardoso alerta que “o facto de ser muito frequente, faz com que seja normalizado pelas mulheres, até por uma questão de sobrevivência psíquica”. Enquanto vítimas, as mulheres começam “a olhar para esses comportamentos e desvalorizá-los, porque precisam, para conseguirem viver com eles”, porque é uma realidade do seu quotidiano.
Maria, Rafaela e Mariana Gonçalves são mulheres e estudantes. Ao longo da sua vida, sempre foram confrontadas com episódios de assédio, quer seja na rua ou no espaço digital. “Acho um absurdo ser rara a vez que saio de casa e não ouço um piropo ou até que me apalpem”, sublinha Maria, estudante de medicina, em Lisboa. Natural de Bragança, a jovem de 21 anos foi apalpada duas vezes na rua, na capital. “Na primeira vez, foi só um toque. Mas, na segunda, um rapaz apalpou-me e a minha reação foi olhar para trás e tentar dizer alguma coisa: mas não me saía uma única palavra. Só o via afastar-se” relembra, frustrada. A segunda vez foi há um ano, durante a época de exames, e Maria não conseguiu ver a cara do alegado agressor, que vinha tapada com a máscara e óculos.
Mariana Gonçalves, 18 anos, é aluna do segundo ano da licenciatura em Português, na Faculdade de Letras da UC e quis ser identificada. Natural do Bairro, Vila Nova de Famalicão, aos 15 anos ia frequentemente à missa, todos os sábados, com o seu avô. O patriarca caminhava com mais dificuldade e, naquele dia, Mariana foi avançando até à igreja.
Quando chegou perto da entrada, um carro parou.
“Não valorizei”, conta. O homem saiu do carro e a jovem continuou a andar. “Quando passou por mim, apalpou-me o rabo sem dizer nada e eu corri logo para a igreja, para que alguém me emprestasse o telemóvel, para telefonar à minha mãe”, relata. Não se recorda da cara do alegado agressor, mas acredita que não tivesse “mais do que 40 anos”.
Mariana e Rafaela têm em comum Coimbra e os episódios de assédio frequentes. No primeiro ano, a estudante natural de Sintra vivia perto do edifício das Águas de Coimbra. “Eu adorava viver lá, mas o caminho era sempre horrível, principalmente à noite”, admite. Muitas vezes, ao longo do percurso, os carros abrandavam e começavam a segui-la, lado a lado.
“Lembro-me de uma vez em que disseram que sempre quiseram 'estar com uma loira'. A meio do ano cheguei a comprar um casaco de inverno largo, para tentar passar mais despercebida. Rapidamente percebi que as coisas não funcionavam assim”, sublinha a jovem de 21 anos.
Mariana Gonçalves faz parte de uma tuna. Nos jardins da Associação Académica de Coimbra, onde costumam estar, a estudante estava a ensaiar os saltos característicos de pandeireta, com duas amigas. De repente, “reparei que estava um homem com mau aspeto a olhar para mim e a masturbar-se”, revela. As três estudantes sentiram-se “assustadas e constrangidas” e voltaram para a sala de ensaios. O “senhor, quando reparou que eu o vi, parou de fazer aquilo e foi embora”, refere. Ao regressar a casa, contou a situação ao namorado, mas decidiu não fazer queixa, “por não ter provas”.
Antes da pandemia e quando as discotecas estavam abertas, muitos eram os estudantes que aproveitavam as noites para sair com os amigos. Nesse passado, Rafaela foi com os amigos para uma discoteca que costumavam frequentar, em Coimbra. Quando voltava da casa de banho, “um rapaz meteu a mão dentro da minha camisola. Foi tão rápido, que não consegui reagir”, adianta. “Nem consigo descrever o quão invadida me senti”, admite, e, durante um ano, nunca mais regressou ao mesmo espaço.
Além da via pública, também o espaço digital e as redes sociais têm sido meios para assediar sexualmente utilizadores. Sofia diz que, no seu caso, as abordagens online aumentaram depois do primeiro confinamento, que terminou em maio de 2020. “Mandam-me ‘nudes’, sem eu pedir”, esclarece. A sua reação é bloquear e denunciar. Para a estudante, a rede social em que é mais frequente é o Instagram e, por isso, “não uso tanto, por causa desse tipo de abordagens”, frisa.
Jéssica partilha a mesma experiência. As fotografias que publica, porque a “fazem sentir bem”, levam, na sua opinião, “os homens a pensarem que é para eles”. Assim como Sofia, recebe ‘nudes’ não solicitadas frequentemente, bem como “comentários despropositados e insultos”. Contudo, ao contrário do que acontece na rua, a estudante diz ser mais fácil de controlar, uma vez que pode controlar a receção das mensagens ou bloquear.
Numa das viagens para Coimbra, Rafaela vinha sentada ao lado de um estranho no autocarro. Durante o percurso, o rapaz foi tentando meter conversa, mas a jovem fingia sempre que estava a dormir. A certa altura, sente uma mão a abanar a sua perna. “Ele estava a tentar acordar-me, para dizer que estávamos a chegar”, relembra.
- Podias mostrar-me a cidade – sugeriu.
- Mas eu tenho namorado – retorquiu Rafaela.
- E então? Não podes ter amigos? – perguntou, jocosamente.
De seguida, pediu o número à jovem de 21 anos e ela negou. “Ameaçou que só me ia deixar sair, se eu lhe desse o meu número”, relata. Rafaela levantou-se para tentar sair e o rapaz bloqueou-lhe a passagem com o braço. “Em pânico, acabei por lhe dar o meu número. Depois, bloqueei-o e, a partir daí, nunca mais me sentei à janela” de um autocarro, confessa.
Carolina e Sofia fizeram queixa depois dos episódios de que foram vítimas. Ao inverso do que receava, Carolina teve uma boa experiência. “Fizeram as questões normais, deram força para fazer a participação e incentivaram para ir ao Instituto de Medicina Legal”, elogia. Mais tarde, agradeceu ter ido, pois descobriram “algumas mazelas” na zona dos pulsos e do pescoço. Entretanto, o caso seguiu para julgamento.
Sofia, quando chegou à Guarda, dirigiu-se à esquadra da polícia, “sem grandes expectativas”. Esteve duas horas na esquadra, acompanhada da mãe. “Vi um grande interesse por parte dos agentes”, que procuravam informar-se acerca do processo, descreve. Como conseguiu identificar a matrícula e o alegado agressor, a queixa seguiu para o Ministério Público. Neste momento, com os atrasos provocados pela pandemia, Sofia ainda não foi chamada para prestar declarações. A estudante frisa que “o mais importante nem é a queixa, mas evitar que outras raparigas passem pelo mesmo”.
A psicóloga Sara Paiva elucida que “as situações de assédio são frequentes e a maioria das vítimas de assédio não as reporta por vários motivos, nomeadamente, por medo, por não saber a quem recorrer ou por terem sido aconselhadas a não fazerem nada”. Assim, ao contrário de Carolina e Sofia, a maioria das vítimas fica em silêncio.
Ou, como aconteceu a Mariana, que sentiu a sua situação desvalorizada. No final da missa, a mãe acompanhou-a até à esquadra, para apresentar queixa. “Eles nunca mais fizeram nada, nem falaram no assunto”, refere.
Maria nunca fez nenhuma denúncia. “Se estivesse ali polícia perto, tinha ido dizer alguma coisa”, admite, mas as situações são “tão rápidas” que não consegue perceber a identidade do alegado agressor. Assim, sente que não adiantaria fazer queixa. Por sua vez, Jéssica já se dirigiu com ‘prints’ de episódios de assédio online e as autoridades disseram “que não era grave o suficiente para poderem fazer algo”, relata, frustrada.
A estudante Rafaela confessa já ter tido vontade de fazer queixa, mas “99% das vezes, nem queria contar a ninguém”. No entanto, a “falta de confiança nas autoridades” também a deixa reticente. “Quer seja por desvalorizarem, ou por não dar em nada, quando a queixa segue”, acrescenta a jovem de Sintra.
A gestora do GAV de Coimbra elogia as formações e a sensibilidade dos agentes para o crime de violência doméstica. Contudo, ainda reconhece um caminho a percorrer, no que diz respeito à violência sexual. “Acho que, na violência sexual, nas situações mais graves, de uma violação ou abuso sexual de menores, há uma maior sensibilidade dos agentes”.
Natália Cardoso está consciente que “nas situações de assédio sexual de rua haja uma desvalorização. Há uma fronteira que ainda não conseguem estabelecer entre um galanteio e uma aproximação cortês e a aproximação indesejada”, demarca. Assim, o próximo passo é educar as forças de segurança, autoridade e do campo da justiça para a violência sexual. “É preciso haver uma consciencialização, para além do que está na legislação”, apela Natália Cardoso, embora reconheça que não é um processo imediato.
Tratando-se de um dos tipos de violência de género, há homens que também são vítimas de assédio, não obstante a percentagem seja diminuta. A psicóloga Sara Paiva refere que muitas vezes se remetem ao silêncio “por não saberem a quem recorrer e por medo”. A gestora do GAV de Coimbra salienta, positivamente, que “tem havido cada vez mais homens a procurar ajuda”, independentemente do crime de que sejam vítimas.
Rui*, natural da Madeira, e estudante da UC, foi vítima de assédio. Há dois anos, numa saída à noite com amigos, uma das raparigas que os acompanhava “começou a chamar-me, a puxar e a ser efusiva demais”, começa por contar, via zoom. Com a insistência, Rui quis travar a situação, mas “não queria ser rude, nem desagradável”. Tentou falar com os amigos, para o ajudarem a afastar-se, mas “as pessoas brincavam com a situação e eu ria um pouco”, admite, envergonhado.
“Fui dizendo que não e tentei travar a situação”, esclarece. “Quando ela me tentou beijar e puxar, eu não queria”, ressalva. Depois, com as sucessivas tentativas de parar os avanços, “ela começou a chorar e depois as pessoas diziam que a culpa era minha”, porque tinha ficado naquele estado, descreve Rui, 20 anos, num tom de voz mais baixo.
O estudante diz que, apesar de nunca se ter sentido receoso, o “desconforto era constante”. Rui refere que sempre disse que não, mas a insistência continuava, com os amigos à volta a incentivarem. Perguntei se sentiu pressionado pelos pares. Depois de um longo silêncio, Rui anuiu.
- Quando é que te apercebeste de que tinhas sido vítima de assédio? – questionei.
- No dia seguinte, quando uma pessoa veio pedir desculpa, por não ter feito nada – responde.
- Ficaste surpreendido?
- Sim. Ela disse que, na altura, pensou que era uma brincadeira, mas depois percebeu que tinha sido assediado. Só aí é que me caiu a ficha. Nunca me tinha passado pela cabeça… - admite.
A deputada não inscrita, Cristina Rodrigues, tem debatido as questões que envolvem o assédio sexual e a partilha não consentida de imagens íntimas online. Via e-mail, disponibilizou-se a responder a algumas perguntas e reforça: “assédio não é flirt”. A ex-deputada do PAN propôs, no dia 7 de julho de 2021, “uma alteração ao Código Penal no sentido de tornar o artigo 170.º mais claro e abarcar mais situações, para além de prever agravamento para o caso de as vítimas serem menores ou a situação ocorrer em contexto laboral”.
Apesar do termo assédio sexual ter sido popularizado, apenas é possível apresentar queixa por importunação sexual. No entanto, “ainda é um crime com pouca visibilidade”, destaca Natália Cardoso. Na maioria dos casos, “inicia-se o processo e o que vai acontecer é haver uma suspensão do processo ou arquivamento por falta de prova”, lamenta a gestora do GAV de Coimbra. Cristina Rodrigues critica a falta de garantias de que o crime não vai ser desvalorizado.
Este episódio não foi único na vida do Rui. Antes de ter atravessado o atlântico e ter ido parar à cidade dos estudantes, no secundário, Rui quis seguir a vida militar. Como tal, marcou uma série de exames no hospital. “Tive de fazer raio-x à coluna e à pélvis”, enceta. “Na altura, ela pediu para tirar o cinto, por causa da fivela. E, depois, os calções, mas sempre senti tudo de uma maneira muito estranha”.
Embora, inicialmente, lhe tenha dito que não era necessário, “foi ela que me tirou o botão, abriu o fecho e baixou os calções”, mesmo com as insistências de Rui para o fazer. O jovem estudante tentou apagar o episódio da memória. Na altura, contou à mãe, mas ocultou alguns detalhes. “Tenho a certeza de que ela quereria apresentar queixa”, refere.
“Tocava-me diretamente nos boxers e era tudo estranho. Na altura, não sabia o que estava a acontecer e sentia-me impotente”, reconhece, ainda revoltado.
Para Rui, não é só a vergonha que impede os rapazes de falarem sobre o tema. “Não sabem bem o que é ou acham que, ao ouvir a palavra ‘assédio’, é demais”. No entanto, reconhece que “ser-se rapaz é bem diferente de ser rapariga e eu já testemunhei isso. E tenho noção o quão pior é [ser-se rapariga]”.
Ao recorrer a um psicanalista, aos 16 anos, Rute procurava ajuda e compreensão. Estava a começar a sua vida sexual e, porque “tinha alguns comportamentos desviantes”, buscou perceber o que se passava. “O psicanalista disse-me que tinha uma especialidade em sexologia e eu acreditei”, conta, enquanto beberricamos o chá, que tinha acabado de chegar, e o cheiro a croissants quentes de chocolate penetrava nas nossas narinas.
Durante quatro anos, Rute achava que o que se passava dentro do consultório era normal. Depois de alimentar a confiança da jovem leiriense, agora com 26 anos, “gostava de me cumprimentar com 7 beijos e o último deles era na boca”. A rotina durou alguns meses e os beijos foram-se tornando mais invasivos. Numa das consultas, “ele colocou um filme pornográfico e eu não tinha noção do que se estava a passar ali. Eu achava que era normal”, diz, como quem ainda se mostra incrédula. “Meteu-me a mão no seio e eu disse “para” e, a partir daí, não houve mais comportamentos intrusivos, a não ser sempre o mesmo cumprimentar”.
No caso da estudante da UC, foi um documentário que ajudou a explicar a “ficção” em que vivia:
- Era um filme sobre o caso de umas ginastas que tinham sido assediadas pelo médico – começa. – Elas não tinham qualquer noção, como eu.
- Percebeste que também tinhas vivido o mesmo? - questionei.
- Quando acabou, fiquei estática a olhar: “Isto aconteceu comigo”.
“Nunca tive noção disto, mesmo depois de as consultas acabarem”, repete. Antes do documentário, apenas tinha falado com uma amiga, que lhe tinha confidenciado uma experiência semelhante. Depois, contou à mãe, que ficou a olhar para Rute, e questionou: “Como é que é possível não teres contado nada?”. Só agora é que a jovem percebe que “não era normal”.
Quatro anos depois, a estudante de 26 anos deixou as consultas, porque “se sentia curada”. Agora, que percebe o que lhe aconteceu, quando se cruza com o alegado agressor, na sua cidade natal: “desvio o olhar, não quero contacto com aquela pessoa. Para parecer que não existe, sequer”. Apesar disso, Rute crê que não a afetou nas relações futuras. Não esconde que “é uma parte do passado que gostava de reescrever, não ter sido tão ingénua”.
A irmã de Rute tem, agora, 16 anos. Por isso, tem pensado mais no que viveu: “tenho receio que esteja exposta a isto e não conte a ninguém”.
- E alguma vez tiveste uma conversa com ela sobre isso? – pigarreei e aquecendo as mãos na chávena.
- Não, nunca tive… - um curto silêncio. - Eu não sei como abordar este assunto com ela, sem me dar como exemplo. E eu não gostava de lhe passar que este erro foi cometido e que era eu. Estou a descobrir isso, aos poucos - remata.
Se olharmos atentamente para os relatórios anuais da APAV, há números que revelam quais as entidades que sensibilizam as vítimas para contactarem a associação. Uma dessas entidades é a comunicação social. Rita Basílio, docente na Faculdade de Letras da UC e investigadora na área dos estudos de género e media, ressalva o poder paradoxal dos meios de comunicação social: “quer como reprodutores de desigualdades de género, mas também como instâncias para superarmos essas mesmas desigualdades”.
Produtora de Podcasts e jornalista do Público, desde 2017, Aline Flor é a autora do podcast “Do Género”. “Tinha começado a escrever algumas vezes sobre questões de igualdade de género” e pediram-me para fazer uma proposta. Assim nasceu o projeto que, um ano depois, irá regressar, em breve, com uma nova temporada.
A jornalista recebeu, em 2021, o Prémio Direitos da Criança em Notícia, pelos trabalhos publicados sobre a mutilação genital feminina. “Receber este tipo de reconhecimento é uma maneira de os trabalhos conseguirem um maior holofote”, assume Aline. Contudo, as questões de género não interessavam, desde início, à jornalista. O quotidiano mostrou-lhe essa realidade, presente até no local de trabalho: “uma pessoa começa a perceber que ser mulher é ser diferente. O nosso percurso de vida começa a ser diferente dos nossos colegas homens e começamos a procurar explicações e a encontrar algumas”, explica, entre sorrisos, à distância de uma chamada zoom.
Quando o tema é o assédio, “não podemos de deixar de pensar que quando ignoram, negligenciam os problemas típicos, nomeadamente, a violência que é marcadamente de género, estão a contribuir para a reprodução desses fenómenos”, critica a investigadora e coordenadora do Global Media Monitoring Project em Portugal. Quer seja através do silenciamento ou da veiculação de estereótipos, aponta.
Aline Flor, licenciada desde 2011, acredita que “o que falta é mudar algumas mentalidades”. Uma mudança que vê acontecer com os novos estagiários nas redações “que vêm com uma mente mais aberta para reconhecer que existem desigualdades”, elogia. E dá o exemplo, na escolha das fontes:
“Nós [jornalistas] temos tendência, no geral, em certas situações, - até porque são os homens que estão à frente e são líderes, - em falar muito com homens como especialistas e as mulheres como exemplos.
Eu tento olhar e fazer um pouco mais de trabalho de casa e perceber: “Ok, mas este homem é mesmo quem sabe mais sobre o assunto?”. E, muitas vezes, não, porque se formos para a academia, as mulheres é que estão em maioria”.
A investigadora responsável pelo estudo “Violência online contra as mulheres durante a pandemia de COVID-19” destaca as mudanças positivas, que tem vindo a notar desde que começou a estudar estas temáticas. De facto, “há uma maior da visibilidade, das problemáticas, para a violência de género, uma ampliação significativa dos atores sociais chamados a falar sobre esses problemas”. Porém, “é necessário que o trabalho dos meios de comunicação seja sempre emancipador. As representações deveriam ser sempre emancipadoras, o que não corresponde à verdade”, lamenta.
Quando trabalha temas como o assédio, “o ponto de partida é saber que é um tipo de violência de género”, avisa Aline Flor. Com a velocidade que impera na profissão, muitas vezes é “difícil desligar de um caso e perceber que faz parte de uma estrutura muito maior”, sublinha a jornalista. A produtora de podcasts crê que “é preciso mudar a forma como olhamos para estes assuntos”, mas não sabe ainda como. Apenas que “a imposição não é o caminho ideal”.
É nessa caminhada que surge a investigação académica. “Quem se dedica à investigação pode dar contributos para a adoção de medidas de natureza pública, para se combater estes fenómenos e estas práticas”, bem como recomendações dirigidas aos media, frisa a docente Rita Basílio. Ressalva a importância de dar a conhecer “as evidências para que os poderes instituídos possam, na medida do possível, eleger algumas das recomendações” e combater a violência de género.
Oito mil milhões. É esse o valor que, de acordo com um estudo do Instituto Europeu da Igualdade de Género, custa a violência de género em Portugal, por ano. Uma violência que, de acordo com o jornal Público, os investigadores agrupam em cinco categorias: “homicídio, violência com lesões, violência sem lesões, violação e outros crimes sexuais”.
Natália Cardoso acredita que é importante trabalhar no sentido da prevenção. “Para os próximos anos o desafio vai ser lidar com a violência sexual e as questões do consentimento”.
“Há que investir na educação para: ‘eu pergunto; a pessoa diz que não e, para mim, está tudo bem’.”
A deputada não inscrita assume que é imperioso “que as pessoas percebam o impacto que pode ter nas vítimas e que, nos casos mais graves, pode até levar ao suicídio”. Uma das suas propostas foi a reformulação da educação sexual nas escolas, que foi aprovada, sendo necessário incluir temas como a “igualdade de género ou o consentimento”. No mesmo sentido, a gestora do GAV da APAV, defende que “é preciso falar de uma forma muito aberta sobre sexualidade. Somos um país cheio de tabus”.
Carolina sempre se sentiu segura em andar sozinha na rua. Contudo, depois do ataque de que foi alvo, sente necessidade de ter algo consigo “para se sentir segura”. “Isso é o que mais me irrita, eu nunca fui assim…”, esclarece, desapontada.
Por outro lado, Sofia diz que “enquanto mulher, nunca senti segurança em Coimbra”. Além de partilhar sempre a sua localização com a mãe ou amigos, quando caminha sozinha, olha constantemente para trás. “À noite, não saio se não estiver acompanhada de amigos homens (não só mulheres). Não é boa ideia”, assegura.
Contudo, não é apenas na antiga capital do reino que as rotinas se condicionam. Em Lisboa, Maria, quando está sozinha, está “sempre em chamada com alguém”. Assim como Mariana que, em Coimbra, regressa a casa com o namorado, e, em Famalicão, liga a alguém, para se sentir mais “segura”.
No final de cada conversa, perguntei o mesmo a todas as vítimas:
Sentes receio quando andas sozinh@, na rua?
Todas as mulheres responderam afirmativamente. Rui disse nunca ter sentido receio. “Acho que essa é a grande diferença”, argumenta.
Sara Paiva não deixa de sublinhar “a importância da pessoa vítima de assédio falar com outras pessoas, com as quais se sinta segura”. Por sua vez, “os/as psicólogos/as têm um papel fundamental no que concerne quer à prevenção como à intervenção”.
No ano passado, recorreram à APAV 13093 vítimas. 45% fizeram queixa, uma subida percentual de 3 pontos comparativamente ao ano de 2019. Nos últimos cinco anos, a maioria das vítimas fica calada. Alguns dos testemunhos contam a estória de muitas outras vítimas que continuam enclausuradas num silêncio ensurdecedor.
*Todos os nomes assinalados com um asterisco são nomes fictícios, a fim de proteger a identidade das vítimas.