Por Beatriz Leite, Isabel Moura e Renata Rodrigues
Como milhares de outros refugiados antes deles, os camaroneses Nadège e Franck arriscaram a vida nas águas frias do Mediterrâneo em busca de uma vida melhor. Após terem sido resgatados pela Organização Não Governamental (ONG) Sea-Watch, encontraram, em setembro de 2019, em Portugal, a paz que buscavam.
A dilacerante partida para o desconhecido
Enquanto os sinos da igreja atraem os fiéis nesta fria mas soalheira manhã de domingo de dezembro, Nadège, Franck e o pequeno Júnior dirigem-se até ao nosso encontro. Calmamente, como quem tem, agora, todo o tempo do mundo. E têm.
Ambos naturais da República dos Camarões, Nadège e Franck conheceram-se na Argélia. Ela saiu da sua aldeia devido a problemas familiares que prefere omitir, apenas mencionando que lá "corria perigo de vida", deixando para trás não só os seus pais, como também os seus três filhos menores. A promessa de uma vida melhor desvaneceu-se à chegada a Argel, sendo submetida a condições análogas às da escravidão para reembolsar a sua passagem.
Já Franck fugiu de uma guerra na qual não se revia. Numa guerra na qual não queria intervir. A República dos Camarões, dividida entre anglófonos e francófonos, vive, desde 2016, uma crise separatista - sendo que 80% da população é francófona. Os protestos começaram de forma pacífica, com uma greve de advogados e professores a reclamarem contra um sistema que, segundo eles, colocava as regiões anglófonas em desvantagem. Mas, rapidamente, os conflitos degeneraram em atos de violência que ainda hoje perduram. O conflito já terá causado mais de três mil mortos, segundo o International Crisis Group, e mais de 600 mil deslocados. Com o incentivo do pai, Franck preferiu abandonar o país a ter de pegar nas armas. Atravessou a Nigéria, o Níger e toda a Argélia até chegar à capital, Argel.
Após se conhecerem, já na Argélia, o casal decide rumar até à Líbia. Mas se na Argélia não era um mar de rosas, na Líbia só piorou. Franck arranjou emprego, mas Nadège enfrentou a dureza da prisão líbia, onde viu nascer o único filho do casal, o Franck Júnior. A jovem, de 26 anos, carrega no peito a marca daquela passagem.
É impossível não reparar na cicatriz de Nadège. Recorda-lhe diariamente a sua violenta história. Questionada sobre a marca, respira fundo e confessa: "Isto é a Líbia. Esta cicatriz é a Líbia". Após uma pausa sentida, ganha coragem e refere os maus tratos que sofreu naquele local, o "calvário que se vive naquela prisão". Sem que nos atrevêssemos a perguntar, ela própria relata os abusos sexuais sofridos, perpetuados pelos guardas prisionais, e cujos cigarros apagavam no seu corpo. Aquela cicatriz em particular é só mais uma recordação de uma chicotada de um guarda.
A fuga para a Europa
Assim que saiu da prisão, já com o filho nos braços, a camaronesa quis deixar a Líbia. Já não se sentia em segurança naquele país, "tendo em conta os 'booms' em todo o lado, os tiros, os fogos", desabafa Nadège. Convenceu, então, o seu companheiro Franck a abandonarem aquele país. É sugerida a aventura europeia. Afinal, "apenas" teriam de atravessar o Mediterrâneo...
São várias as rotas conhecidas para os migrantes entrarem na Europa. A rota Líbia- Itália, na mira do casal camaronês, é uma delas.
No dia 13 de junho de 2019, o patrão do Franck avisou-o da partida de uma "embarcação segura" naquela mesma noite. Sem qualquer tipo de preparativo, o casal, com o filho de meses ao colo, decide lançar-se na perigosa aventura de atravessar o Mediterrâneo.
Cinquenta e três pessoas arriscaram a travessia naquela noite. A escuridão é a melhor aliada para alcançar, discretamente, a costa europeia. Amontoados num pequeno barco insuflável ("a famosa embarcação segura"), ambicionam a liberdade. Anseiam pelo dia em que poderão viver sem guerra, conflito ou fome. O instinto de sobrevivência faz com que aguentem o frio e o medo. São 12 horas nas gélidas águas do Mediterrâneo. "Rezam" por um milagre - sobreviver àquela noite. Era quase meio dia quando avistaram um barco. "Pensámos que era a Líbia que nos vinha buscar, mas, para nossa surpresa, disseram: 'não tenham medo, somos a Sea-Watch, queremos salvá-los'", lembra, sorridente, Nadège.
O resgate
A Sea-Watch é uma organização sem fins lucrativos que lidera operações civis de salvamento no Mediterrâneo central. "A União Europeia está empenhada na democracia e nos direitos humanos, mas ao mesmo tempo continua a isolar-se dos que fogem. Como resultado deste isolamento, milhares de pessoas morrem todos os anos na esperança de chegar a um porto seguro na Europa", pode ler-se no site da Sea-Watch. A organização não governamental nasceu em 2014 pela iniciativa de voluntários que já não conseguiam ficar indiferentes às mortes que vinham sucedendo nas águas do Mediterrâneo. Para a Sea-Watch, "ninguém merece morrer nas fronteiras externas da União Europeia em busca de uma vida mais segura e mais humana."
Extenuados, os 53 migrantes são resgatados a bordo do Sea-Watch 3 a 14 de junho de 2019, nas margens da costa italiana.
Apesar da lei internacional obrigar as embarcações a levar os migrantes para o porto seguro mais próximo, o então ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, recusou a entrada do Sea-Watch 3 no porto de Lampedusa, defendendo que o porto mais próximo seria o de Trípoli. Mas essa não era, sequer, opção para a capitã do Sea-Watch 3, a alemã Carola Rackete.
O braço de ferro durou dias até que, em 29 de junho, Carola Rackete, decidiu desrespeitar as ordens italianas por considerar que o porto italiano era a opção mais segura para as 53 pessoas que estavam a bordo. A polícia italiana acabou por prendê-la nesse dia.
Em declarações à imprensa, em sua defesa, a capitã alegou o seu dever moral. Mas mais do que moral, o artigo 98º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do mar estabelece o dever de prestar assistência em situação de perigo. Perante esta e outras situações semelhantes, a Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, junto do Parlamento Europeu, apresentou, em 21 de outubro de 2019, uma proposta de Resolução do Parlamento Europeu sobre a busca e o salvamento no Mediterrâneo que visava dirimir estas posições. Porém, a Resolução foi rejeitada por apenas dois votos.
Face ao bloqueio italiano, a Finlândia, a França, a Alemanha, o Luxemburgo e Portugal ofereceram-se para receber os migrantes do Sea-Watch 3. Enquanto aguardavam o seu destino final, os refugiados ficaram cerca de dois meses e meio na Sicília. Nadège, Franck e o filho foram destinados a Portugal. Nadège confessa que caso tivesse tido opção de escolha, provavelmente teria escolhido a França, por causa da língua. Já Franck, de origem anglófona, não fazia questão, demonstrando, inclusive, desagrado pelas políticas francesas.
Portugal e a paz à vista
O grupo acabou, desta feita, dispersado por diversos países da Europa. No dia 13 de setembro, seis pessoas chegaram a Portugal. Uma semana depois, a família de Nadège chegava a Braga. "Não contava com uma receção destas", admite.
Em Portugal, Franck sente-se um homem livre. Até porque, como o próprio refere, em Braga, três ou quatro meses depois de terem chegado, o casal já tinha emprego: ela como ajudante de cozinha e ele como maquinista. Só lamenta o facto de os salários serem tão baixos, mas acredita ser um bom país para viver, considerando que, por cá, "são realmente levados a sério", ao contrário do que sucede com conhecidos dele que, no Luxemburgo ou Alemanha, estão longe de terem suas situações resolvidas.
Do alto dos seus 26 anos, Franck demonstra uma maturidade que só uma história de vida como a dele pode explicar. Saiu de casa para fugir à guerra, deixando para trás a família que não vê desde então. Já lá vão cinco anos. Traz com ele a mágoa de saber que o seu pai foi morto pelos separatistas, sem sequer saber onde se encontra sepultado. Chegar a Braga "é como se começasse do zero", afirmou. Só que agora livre, como ele tanto desejava. "Posso dizer o que penso, fazer o que eu quero, posso comer a meu gosto e de acordo com a minha fome", diz o refugiado. Considera estar bem integrado na comunidade. Tem trabalho, casa e joga futebol de forma amadora com colegas portugueses. Gosta de Portugal e diz nunca ter sentido nenhum ato discriminatório em Braga. Mas lamenta a distância não só da família, como dos amigos. "Aqui só conhecidos", indicando a falta de história e vivências comuns com aqueles.
Apoio institucional
Mas para abrir um caminho seguro aos refugiados é preciso o apoio e o trabalho em várias frentes. Assim como as ONGs, e entre elas a SEA-Watch, entram em cena outros organismos internacionais e, em especial, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Essa necessidade de ação revela-se urgente já que as estatísticas sobre os fluxos migratórios para a Europa apontam que no final de 2019, existiam 26 milhões de refugiados e 45,7 milhões de pessoas deslocadas internamente em todo o mundo (dados do ACNUR). Na União Europeia (UE), a percentagem de refugiados representa 0,6 % da população total ( 2.591.632 de refugiados para uma população total de cerca de 450 milhões de pessoas)
Em Portugal, foi criada em 2015 a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), uma resposta da sociedade civil no país às necessidades dos que se encontram nesta situação. O acolhimento de Nadège e o Franck é fruto dessa parceria, ao serem encaminhados através da UE/Governo português para a PAR, que faz o direcionamento dos refugiados.
O apoio bracarense
Em Braga, um desses ‘braços’ para ajudar no recomeço dessas famílias é o Colégio Luso Internacional de Braga (CLIB), parceiro da PAR desde 2015, impulsionado pela sua diretora pedagógica, Helena Pina-Vaz. Em novembro de 2020, o CLIB acolheu a décima família. O que começou como uma mistura de proposta pedagógica e de cidadania, mobiliza, hoje, toda a comunidade ligada ao colégio.
Segundo Helena Pina-Vaz, em 2015, perante as notícias de um êxodo mundial muito grande, sobretudo dos sírios e iraquianos, os alunos foram desafiados a não ficarem indiferentes. E não ficaram. Mobilizaram-se os pais, os alunos e os educadores. A maioria das famílias acolhidas é oriunda da Síria, Iraque e algumas de África. O problema da língua pode até ser um revés, mas quase sempre é resolvido com a ajuda do tradutor do telemóvel, brinca a diretora.
A diretora do CLIB reforça que os bons resultados neste percurso de acolhimento vão além de uma empatia inicial com a causa, mas resultam de um profundo envolvimento, em todos os níveis, entre a escola e os parceiros nesta jornada. "Uma escola é a comunidade ideal para fazer qualquer coisa, porque temos a sensibilidade e o coração doce das crianças, temos a energia dos jovens para levar tudo a frente deles, temos o backup dos pais, e juntos temos essa possibilidade de fazermos uma coisa boa", salienta.
Em 15 de novembro de 2019, Nadège iniciou uma formação na área da cozinha, sendo, hoje, funcionária do CLIB. É com ternura e sorriso rasgado (e com uma certa vaidade) que a agora cozinheira do colégio pronuncia o nome da "Dra. Helena", considerando mesmo ser "a protegida" da diretora.
"O mundo é grande o suficiente para todos nós"- Helena Pina- Vaz
Hospitalidade e dignidade da pessoa humana são apenas dois dos valores pelos quais se pauta esta cidadã do mundo. São esses os valores que pretende transmitir aos seus alunos e, porque não, a toda a comunidade bracarense.
Helena Pina- Vaz recebeu, no mês passado, a medalha de mérito municipal, de Grau Prata, entregue pela Câmara Municipal de Braga.
Pedidos de asilo e resposta da UE
Segundos os dados da Comissão Europeia, em 2019, a UE recebeu quase 700 mil pedidos de asilo, incluindo 631 mil apresentados pela primeira vez- o que representa um aumento de 12 % em relação a 2018. No topo dos pedidos, surgem os Sírios e os Afegãos, que fogem dos conflitos armados.
A maioria dos pedidos de asilo foram apresentados na Alemanha (142.450) , na França (138. 290), na Espanha (115.175), na Grécia (74.910) e na Itália (35.005).
Desses pedidos, 109 mil pessoas obtiveram o estatuto de refugiado.
No que diz respeito às passagens ilegais das fronteiras, segundo as estatísticas da Comissão Europeia, existe uma tendência para a sua diminuição. Se entre 2018 e 2019 se verificou uma uma diminuição de 5% , entre janeiro e agosto de 2020, percebemos uma descida de 13 % relativamente ao período homólogo de 2019, correspondendo ao número mais baixo dos últimos seis anos.
Das 141.700 passagens ilegais das fronteiras em 2019, 106.200 foram efetuadas por travessias marítimas-ou seja 7% menos do que em 2018.
Em 26 de novembro de 2020 foi aprovada a Resolução do Parlamento Europeu sobre a situação dos direitos fundamentais na União Europeia que institui os Direitos fundamentais dos migrantes, requerentes de asilo e refugiados. Nela é solicitado que seja aplicada a Recomendação da Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, de junho de 2019, intitulada «Lives saved – Rights protected – Bridging the protection gap for refugeesand migrants in the Mediterranean» (Vidas salvas – Direitos protegidos – Colmatar ofosso na proteção de refugiados e migrantes no Mediterrâneo). É recomendado, logo no primeiro capítulo, que "se garanta que armadores, ONGs e companhias marítimas não sejam penalizados por cumprirem seu dever de resgatar pessoas em perigo no mar".
A boa vontade ao serviço dos outros
O drama dos refugiados atingiu o clímax em 2015, quando o mundo inteiro se comove com a imagem do menino sírio Alan Kurdi, de três anos, ao largo de uma praia turca, morto. A partir de então, na Obra Católica Portuguesa de Migrações (Obra Católica) fez-se mesmo sentir um aumento da disponibilidade por parte da sociedade civil para ajudar. Foi então que Rui Marques, enquanto coordenador do Instituto Pe. António Vieira (IPAV), decidiu reunir esforços, convocando todas as instituições interessadas em "fazer alguma coisa com a boa vontade que se vinha sentindo da sociedade", lembra Eugénia Quaresma, diretora da Obra Católica.
Da reunião saem as bases para fundar a já citada PAR (Plataforma de Apoio aos Refugiados), à qual aderiram paróquias, escolas, associações, confrarias, entre outras instituições. A maioria orientada por valores cristãos, como no caso da Obra Católica, com o objetivo de ajudar cada família recém-chegada a Portugal a ser autónoma. Para isso, cada parte envolvida tenta mover esforços no sentido de providenciarem trabalho, casa, vestuário e cuidados de saúde.
Atualmente, Eugénia Quaresma estima que estejam em território nacional para cima de 800 famílias integradas. Mas nem todos os que aqui chegam ficam. Há quem, passado pouco tempo, opte por outro país. Foi por isso que a PAR decidiu criar centros de triagem. Para que cada um tenha tempo para discenir sobre o futuro. O que garante, de acordo com a diretora da Obra Católica, "uma maior fixação posterior".
Estes centros não têm, porém, nada a ver com os campos de refugiados. Como lembra Eugénia Quaresma, numa conversa via zoom, esse é um cenário evitável a todo o custo. Até porque, esses locais "não se recomendam a ninguém. Não é o que desejamos para ninguém. São geradores de conflitos, pela sua natureza", finaliza.
Sem boas-vindas
Mas o medo por parte dos portugueses pode retrair os recém-chegados. "Têm medo do desconhecido e do terrorismo", conta a diretora. Para além disso, desconfiam da necessidade destas pessoas, cuja guerra e violência as empurraram para a Europa. O emprego também é indutor de hostilidades. O que é um "mito", uma vez que "muito dos lugares que os imigrantes vêm ocupar são lugares vagos há muito tempo. Muita das vezes vêm desempenhar os trabalhos mais perigosos, trabalhos ditos mais sujos (limpezas), trabalhos pesados, trabalhos mal remunerados...", explica.
Para acolher, o povo português precisa, por isso, de ter a certeza de que não haverá abuso e que não é defraudado. Para operacionalizar a pastoral das migrações no país existe, por isso, a Obra Católica. Segundo as indicações do Vaticano, através da secção “Migrantes e refugiados”, tutelada pelo Papa, e as orientações pastorais, cada diocese procura efetivar ações em volta de quatro verbos - acolher, proteger, promover e integrar. O fim último é o reconhecimento do imigrante como cidadão, podendo este votar. "É esta a missão que o Vaticano pretende de todas as conferências episcopais", resume.
Chegar até à Obra Católica
A Obra Católica Portuguesa de Migrações é um serviço da Conferência Episcopal Portuguesa. Nasceu em 1952 para apoiar a diáspora portuguesa a não perder a fé, enviando sacerdotes para as comunidades estrangeiras.
A Obra Católica advoga a liberdade de culto, acima de tudo, e a solidariedade. Por essa razão, ainda antes de pertencerem à PAR, já auxiliavam quem batesse à porta. Hoje, o trabalho com os refugiados passa muito pela sensibilização das paróquias e pela orientação dos esforços de quem, amavelmente, deseja cooperar.
Em Braga, ele é feito através do Secretariado Diocesano de Migrações. No entanto, em cada secretariado, a dinâmica com os voluntários é a mesma. O apoio financeiro advém das paróquias. Uma parte desses donativos fica para os secretariados, outra vai para a Obra Católica. O ano de 2020, consequência da pandemia, ditou um rombo a nível financeiro, mas o trabalho continuou. Há outras famílias em busca da paz...
Segundo comunicado do Governo de 28 de dezembro de 2020, Portugal acolheu, até ao momento, ao abrigo do Programa Voluntário de Reinstalação do ACNUR e da Comissão Europeia, 631 refugiados. Destes, 253 chegaram do Egito e 378 da Turquia.
Enquanto isso, cerca de 3.000 refugiados sem abrigo enfrentam o inverno bósnio após o incêndio que destruiu, em 23 de dezembro, um acampamento na cidade de Biha.
-Janeiro de 2021-
Contactos: maria.beatriz.leite@hotmail.com, mibm0305@gmail.com, renatarodrigues.jornalista@gmail.com
Credits:
Chris Grodotzki