"A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”. Assim foi descrito o sofrimento de Carolina Maria de Jesus em seu livro Quarto de Despejo. Publicado em 1960, a obra reúne relatos dos diários da escritora e retrata seu duro cotidiano como catadora de papel na favela do Canindé, em São Paulo. Carolina não poupou críticas ao cenário político da época, com análises sobre a desigualdade social e a situação do pobre no Brasil: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!”.
Mais de seis décadas depois, o fantasma da fome segue a assombrar os lares brasileiros. Cerca de 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente, conforme mostrou um levantamento divulgado em junho de 2022 pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. O estudo foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) e aponta um aumento de 14 milhões de pessoas passando fome em relação a 2020.
Em setembro de 2015, líderes mundiais de 193 países se reuniram na sede das Nações Unidas (ONU) em Nova York e se comprometeram com a Agenda 2030, um plano de ação para atingir os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Entre as metas estabelecidas, estão a erradicação da pobreza (ODS 1), a agricultura sustentável e o fim da fome no mundo (ODS 2), a promoção da saúde e do bem-estar (ODS 3) e a redução das desigualdades (ODS 10).
O Brasil é uma das nações signatárias da Agenda 2030, no entanto, a promessa do combate à insegurança alimentar foi deixada para trás. O país vive um retrocesso histórico e voltou para o Mapa da Fome em 2018. A situação se agravou ainda mais com a pandemia e a decorrente crise econômica, além da falta de ações governamentais de amparo social. O país chegou a ser referência internacional quando políticas públicas reduziram a fome de 9,5% para 4,2% dos lares brasileiros entre 2004 e 2013. Hoje, as estatísticas apontam para 15,5% dos domicílios nessa situação.
No dia 16 de outubro, é comemorado o Dia Mundial da Alimentação, que se baseia em quatro pilares principais: melhor ambiente, melhor nutrição, melhor qualidade de vida e melhor produção. A data, criada para alertar sobre o atual quadro da alimentação no mundo, fica ainda mais evidente com o atual crescimento dos índices de fome, insegurança alimentar e desigualdade social.
Dados do IBGE apontam que 41% da população brasileira vive sem acesso pleno à alimentação. No período de 2014 a 2018, se observou uma acentuada queda da segurança alimentar e, como resultado, um aumento no número de famílias sem acesso adequado e suficiente à comida. A pesquisa do IBGE ainda alerta que, no período de 2017 a 2018, 25,3 milhões de domicílios brasileiros (36,7%) já enfrentavam algum nível de insegurança alimentar.
O Brasil não é o único país atingido pela fome. Trata-se, na verdade, de um problema de escala global, conforme mostra o relatório publicado em 2021 pela Conferência Nacional da Alimentação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). O estudo afirmou que 30% da população mundial estava em insegurança alimentar moderada ou grave, o que representa cerca de 2,3 bilhões de pessoas, além de que aproximadamente 924 milhões enfrentam níveis mais preocupantes de falta de alimentos.
A previsão da ONU para os próximos anos não é otimista: de acordo com as projeções feitas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 8% da população global passará fome em 2030, equivalente a 670 milhões de pessoas.
Mas afinal, o que é Insegurança Alimentar?
Segundo a FAO, a insegurança alimentar é um fenômeno que ocorre quando um indivíduo não possui acesso econômico, físico e social a alimentos que são essenciais para a sua sobrevivência. Isso significa que uma pessoa em situação de insegurança alimentar passa por dificuldades e incertezas por não saber quando e como será sua próxima refeição, assim, colocando em risco sua saúde, nutrição, qualidade de vida e bem-estar.
A FAO classifica a insegurança alimentar em quatro níveis:
- Insegurança alimentar leve – queda na qualidade dos alimentos consumidos, preocupação com o acesso a alimentos no futuro.
- Insegurança alimentar moderada – incerteza sobre a capacidade de conseguir alimento, risco de pular refeições ou da comida acabar, redução da qualidade (nutricional) e quantidade de alimentos consumidos.
- Insegurança alimentar grave – ficar sem comida, passar fome, escassez de alimentos para todos os membros da família, ficar sem comer por um dia ou mais.
- Insegurança alimentar crônica – é considerado um nível extra, ele se mantém ao longo do tempo, ou seja, indivíduos que vivem grandes períodos de incertezas em relação às suas refeições. Esse nível geralmente está relacionado a causas estruturais da sociedade.
Diante disso, a segurança alimentar só existe quando todas as pessoas de uma família ou indivíduos solos possuem acesso a alimentos nutritivos, a qualquer momento, suficientes e de qualidade para satisfazer suas necessidades e para levar uma vida ativa e saudável.
A fome tem cor, lugar e gênero
O problema da fome acentua as desigualdades de classe, gênero e raça, conforme mostrou o levantamento da Rede PENSSAN: pessoas negras, habitantes das regiões Norte e Nordeste, moradores do campo e mulheres são mais vulneráveis à insegurança alimentar. A tendência crescente da fome é resultado de desigualdades históricas, combinadas com a falta de políticas públicas eficientes e a crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19.
O inquérito revelou que 4 em cada 10 famílias das regiões Norte e Nordeste relataram preocupação sobre a qualidade da alimentação e incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo. No Centro-Oeste e Sudeste, a estatística cai para 3 em cada 10 famílias e no Sul 2 em cada 10. Além disso, a situação é mais grave para quem mora em áreas rurais: a insegurança alimentar está presente em mais de 60% dos domicílios do campo e 18,6% dessas famílias lidam com a fome, valor maior do que a média nacional.
A insegurança alimentar é maior entre a população negra, sendo que 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com restrição de alimentos. A fome nesses domicílios teve um aumento de 70% entre 2020 e 2022. A questão de gênero também é um agravante nas estatísticas devido à desigualdade salarial. O estudo mostrou que 6 em cada 10 lares comandados por mulheres convivem com a insegurança alimentar. Nas famílias em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%, enquanto nos lares comandados por homens foi de 7,0% para 11,9% no mesmo período.
Ainda que o Sul seja a região menos atingida se comparada ao restante do território brasileiro, a fome é um problema a ser encarado no estado de Santa Catarina. Um estudo da Oxfam Brasil aponta que 12,2% dos catarinenses passam fome, o que representa um contingente de 896 mil pessoas. Na capital Florianópolis, foi aberto em julho de 2022 o primeiro Restaurante Popular da cidade, com o objetivo de amparar a população vulnerável.
Restaurante Popular
O primeiro Restaurante Popular de Florianópolis, localizado na Avenida Mauro Ramos, no Centro, é uma iniciativa que oferece refeições de qualidade, visando garantir segurança alimentar e nutricional por valores acessíveis, principalmente para cidadãos de baixa renda e/ou em situação de insegurança alimentar.
Segundo o diretor geral do Restaurante Popular, Marcos Ramos, o local tem capacidade de produzir 2 mil refeições por dia, incluindo café da manhã, almoço e jantar.
Atualmente, com pouco mais de cem dias de funcionamento, já são consumidas mais de 1,7 mil refeições. Os alimentos servidos passam por acompanhamento especializado e planejado para oferecer uma boa nutrição. O diretor conta que antes do restaurante muitas famílias na capital catarinense não comiam com qualidade: “Muitas vezes pensamos que ‘ninguém passa fome em Florianópolis’. Mas não tem a ver com passar fome, e sim comer comida nutritiva. São coisas diferentes e essa é a proposta do restaurante”, reforça Marcos.
O estabelecimento conta com 30 funcionários, coordenados por quatro nutricionistas e uma gerente nutricional. Ao todo, eles são separados em duas equipes, duas nutricionistas, dois cozinheiros, uma gerente nutricional, cinco auxiliares de cozinha e dois auxiliares de limpeza que trabalham para servir os pratos. A organização é feita através de uma escala de 12h por 36h, ou seja, uma equipe trabalha dia ímpar e outra dia par, o que resulta em uma média de 20 trabalhadores por turno.
Lisbete Rodriguez, de 37 anos, é venezuelana e se alimenta no restaurante com toda sua família, seu marido Victor Montesano e seus filhos Victor Davi e Ana Júlia, por volta de três a quatro vezes na semana. O marido está desempregado no momento e ela conta que o dinheiro que ganha com seu trabalho de costureira não é o suficiente para cobrir os gastos. Lisbete é isenta do pagamento e acredita que o restaurante é uma benção em suas vidas, “é uma grande ajuda, no meu caso por exemplo, o que ganho não dá muito para pagar tudo”. A costureira completa dizendo que “se não tivesse o restaurante, meus filhos provavelmente comeriam algo, mas eu não”.
Quem pode utilizar Restaurante Popular?
Todos os moradores da cidade podem se alimentar no restaurante, mas o serviço é preferencial à população em vulnerabilidade social e/ou situação de insegurança alimentar.
O preço da refeição varia de acordo com a renda. Para pessoas sem renda, o acesso é totalmente gratuito. Já pessoas com renda de até meio salário, pagam R $3 no almoço e R $1,50 no jantar e no café da manhã. Para aqueles com renda maior que meio salário, o valor é de R$ 6 no almoço e R$ 3 no jantar e café da manhã.
*Indivíduos de grupos prioritários (sem renda) devem se cadastrar no Cadastro Único para serem isentos. Aqueles que tiverem renda maior que meio salário não precisam de cadastro para ter acesso.
Funcionamento do Restaurante Popular
O local atende a população sete dias por semana, com três refeições diárias, que são:
- Café da manhã – das 7h às 9h
- Almoço – das 11h às 14h
- Jantar – das 18 às 20h
Um amparo para a população
Eduardo Matheus Mendes Luiz tem 25 anos e cursa Design de Produto no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). O estudante optou por se alimentar no Restaurante Popular por conta da praticidade, visto que nem sempre é possível conciliar a rotina de estudos com o preparo de refeições todos os dias.
“É barato, a comida é boa e vem bastante”, descreve Eduardo.
Igor de Jesus Carrilho, de 23 anos, é natural de São Paulo, mora em Florianópolis há um mês e está em situação de rua com a sua mãe há uma semana. Ele relata que “o restaurante é muito bom, principalmente para pessoas que não tem o que comer ou que não conseguem fazer comida”, ainda reforça que o espaço é uma grande solução para pessoas na mesma situação que a sua. O jovem se alimenta no restaurante faz três dias e é totalmente isento por conta do Cadastro Único.
*Se você conhece alguém que está em situação de insegurança alimentar em Florianópolis, indique a inscrição no Cadastro Único para que a pessoa tenha direito a acessar o Restaurante Popular.
Fome não é brincadeira!
Arte da capa: UOL VivaBem
Trabalho final produzido pelas alunas Beatriz Rohde e Larissa Santos para disciplina de Jornalismo Online e Narrativas Digitais, ministrada pelas professoras Fabiana Quatrin e Rita de Cassia, no segundo semestre de 2022.