A “cidade do Homem” que espera a “cidade de Deus” Foi em Outubro de 2020 que Palaçoulo recebeu as primeiras monjas no Mosteiro Trapista de Santa Maria, Mãe da Igreja. A viver no que será a hospedaria, acordam todos os dias para rezar, estudar e trabalhar com vista para as obras do mosteiro propriamente dito, que só estará pronto nesta altura de 2023. O Igreja Viva foi descobrir esta nova fonte de vocações em Portugal.
Três horas. 3h20 da madrugada, melhor dizendo. É hora de acordar no lugar do Alacão, em Palaçoulo, onde o dia começa ainda debaixo do manto de estrelas que cobre as terras mirandesas enquanto nós, leigos, descansamos. Às quatro já é hora de vigília, onde 30 minutos de oração silenciosa antecedem o angelus, memória do momento da Anunciação da concepção de Jesus.
As 10 monjas da trapa – nome coloquial para a ordem conhecida como trapista, mas que é, oficialmente, a Ordem Cisterciense da Estrita Observância – chegaram ao interior de Portugal em Outubro de 2020. Enviadas a partir do Mosteiro de Vitorchiano, pouco mais 80 quilómetros a norte de Roma, vieram fundar o Mosteiro Trapista de Santa Maria, Mãe da Igreja, que tinha sido anunciado três anos antes como um “sonho de Deus” pelo então bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro.
A criação de um novo mosteiro em pleno século XXI é, para Portugal, inédita. Até porque o país, apesar de ser esmagadoramente católico, não vê um novo mosteiro a surgir há mais tempo do que é possível a memória de alguém alcançar sem pesquisa e estudo, e em 1834 viu as ordens religiosas a ser expulsas por decreto.
O lugar pode parecer estranho, mas dificilmente poderia ser mais acertado. Não muito longe daqui, em Castro de Avelãs, Bragança, está outro mosteiro, beneditino, que deu origem, através das linhas tortas da História, à actual Diocese de Bragança-Miranda. A diocese que nasceu de um mosteiro faz renascer os mosteiros.
O isolamento de Palaçuolo, como se diz e escreve na língua desta terra, faz ainda mais sentido para a irmã Giusy. “Os cistercienses sempre procuraram lugares desertos, bastante afastados das cidades, bastante livres para organizar a própria vida com mais liberdade. E o silêncio aqui é fantástico”, acrescenta, de sorriso inspirado.
É a Ir. Giusy Maffini, superiora, que nos vai guiar hoje. A monja, de 59 anos, foi, em conjunto com a Irmã Deborah, a primeira a chegar ao que, no futuro, será a casa de acolhimento deste mosteiro. Por agora, esta “cidade do Homem” tem que acolher as monjas e tudo o que é necessário a esta vida monástica que, durante mais um ano, não será tão monástica como estavam habituadas.
“O primeiro desafio foi transformar a realidade da hospedaria em convento”. Não foi difícil porque o espaço é “bastante grande”, mas tiveram que pensar “em pôr os lugares regulares dentro da hospedaria”.
Regulares, porque estas monjas vivem de acordo com a Regra de São Bento. O ora et labora estipula quatro tipos de espaços: oração, trabalho, estudo e residência. Estando a residência tratada com a hospedaria e existindo já uma capela, “cerne da nossa vida”, era preciso arranjar espaços para o trabalho, estudo e para um escritório. Tudo se arranjou. Mas o que “mais falta faz” é que “o mosteiro é pensado em função da vida regular, e portanto tem o claustro, que é o cerne do mosteiro, e é à volta dele que se desenvolve tudo”. Se há algo em que a Ir. Giusy sente a diferença face a Vitorchiano é que, lá, nem sequer dava conta da passagem das pessoas, enquanto em Palaçoulo, para já, “quando chega uma pessoa, toda a comunidade, de uma forma ou de outra, é envolvida”.
A Regra que cedo acorda as monjas também diz que as primeiras horas do dia são passadas a rezar. Depois da vigília e angelus, celebra-se uma Lectio Divina às 5h15, a oração de Laudes – também com a ‘leitura orante’ – às 6h45, e missa às 8 horas, integrando a Hora Tércia, rezada pelas 9h. Depois começa o trabalho.
A intenção é que, como acontece noutros mosteiros trapistas, o trabalho sustente a comunidade. Mas ainda há caminho a fazer para chegar a esse ponto, e a superiora sente que vai ser um “desafio imenso”, até porque “a comunidade ainda é bastante pequena” e a terra, essa, “não era lavrada há muitos anos” e está cheia do xisto característico da região. Dificuldade que não atinge o ânimo, ou não tivesse a irmã Giusy contado isto entre risos alegres.
Para já, pediram ajuda para lavrar a terra, principalmente nos trabalhos mais pesados, porque o mosteiro ainda não tem as máquinas que existem, por exemplo, em Vitorchiano. Da horta já brotam “batatas, courgettes, tomates, abóboras e muito mais”, e tanto o amendoal como o pomar – compostos por centenas de árvores oferecidas pela diocese local – já estão a “crescer bem”. Para além de venderem as amêndoas, fabricam os amaretti, biscoitos tradicionais da Itália feitos com amêndoa moída, açúcar e claras de ovos, assim como o pãozinho do peregrino.
Outra limitação é não conseguirem “trabalhar os produtos da forma que a Europa pretende”, o que leva a que, apesar de algumas irmãs terem aprendido a tratar abelhas e haver uma licença para dois hectares de vinha, não haja ainda produção nem de mel, nem de uvas e vinho. Tudo será resolvido pelo mosteiro, que vai ter “uma parte em baixo que é totalmente estruturada para o trabalho”, dando “todas as condições” a estas trapistas para atingir a tal sustentabilidade e “ganhar a vida”.
O mosteiro e a igreja abacial, com toda a importância que têm para a vida desta nova comunidade, representam um esforço de “mais de sete milhões de euros”, partilhado maioritariamente entre Vitorchiano e outros mosteiros europeus com capacidade de contribuir. Mas “o desafio é tão grande que ainda há espaço para toda a ajuda” que possa surgir, dizem as monjas.
São 12h30, hora de voltar à oração, rezar a Hora Sexta e voltar a ouvir o angelus. No meio de tudo, a facilidade com que nos compreendemos é surpreendente. As ocasionais falhas no português das monjas italianas não são obstáculo nenhum. “Desenrascamo-nos, mas não sabemos muitas coisas”, diz a irmã Giusy, que ainda não se enganou numa única palavra na nossa conversa. Começaram a aprender a língua de Camões “praticamente quando o grupo foi formado oficialmente, em 2018”, tendo aulas um dia por semana, e agora a maior dificuldade é habituarem-se a falar português na vida monástica. Isso mesmo testemunhamos quando a irmã Lucia começa a tirar dúvidas em italiano de forma automática, não se apercebendo até que a sua superiora diga, sempre sorridente, que têm que falar português.
Rezar em português ajuda. “Toda a liturgia é portuguesa”, diz Giusy, que aponta para a irmã Irene e explica que é ela quem tem o trabalho de arranjar a liturgia. Outros textos, como os de autores espirituais e da tradição trapista – como São Bernardo de Claraval, Elredo de Rielvaux, Guerrico de Igny e Guilherme de Saint Thierry – estão, “infelizmente”, na variante brasileira – não fosse esse o país com mais falantes de português. Faz tudo parte do caminho de “conhecimento das pessoas, do povo e da terra”, para onde trazem agora a sua vocação.
Vocação, a palavra forte, representativa da grande necessidade que a Igreja diz sentir. O que significa ser trapista? “Entrar num mosteiro, fazer um caminho, fazer votos e professar-se segundo a Regra de São Bento”. Resposta fácil para quem abraça a vocação da vida monástica desde o fim dos anos 80. Mas o que fez a irmã Giusy escolher esta vida? “Encontrei uma comunidade pela qual me apaixonei”, explica, de novo com um sorriso claramente iluminado pela fé. “A liberdade que encontrei naquelas pessoas teve impacto em mim, e também a alegria que vi nos olhos e na forma de viver. Isso fez-me dizer que se calhar Deus realmente existe e que talvez pudesse ser um desafio para mim. Demorei muitos anos para chegar aí porque antes tinha que encontrar verdadeiramente quem era Jesus Cristo para mim. Enquanto não percebi isso, não decidi fazer uma vida assim.” E foi assim que decidiu fazer os votos de obediência, de pobreza, de castidade e de estabilidade – “de ficar na mesma comunidade toda a vida”.
O desafio, agora, é transmitir isso mesmo e “ter vocações portuguesas bastante jovens”, porque “quando uma pessoa jovem vê outra jovem, e da sua terra, é diferente”. Se antes as vocações surgiam “dentro do contexto familiar”, agora é preciso “procurar as vocações, fazer a proposta às pessoas”.
Foi por isso mesmo que as monjas lançaram o Verão Vocacional, um desafio às jovens e mulheres portuguesas dos 18 aos 40 anos a passar alguns dias de férias na hospedaria do Mosteiro e a reflectir sobre as suas vocações. É possível escolher vários dias dentro dos períodos de 1 a 16 de Julho, de 8 a 14 de Agosto, de 25 a 30 de Setembro e ainda de 1 a 8 de Outubro para conhecer a vida das trapistas.
Graças a essa iniciativa, já foi possível o encontro com algumas jovens portuguesas e até espanholas, de Madrid, a quem a palavra chegou através de amigos de padres. É esse encontro que é importante. “Eu acho que a base de uma vocação está sempre no encontro com uma realidade da vida e com pessoas que despertam perguntas e interesses”, diz a irmã Giusy, para quem o modelo do Verão Vocacional “ajudou a introduzir” o assunto da questão vocacional, que “demora a surgir dentro do coração das pessoas, mas às vezes não têm coragem de se expor”.
A que se deve esse medo? “As pessoas têm medo sobretudo do quotidiano, da rotina constante... Perguntam se não nos cansamos de viver assim, com uma regra sempre certa”. O que está escondido e fica a descoberto com o Verão Vocacional é que a vida monástica “é muito rica em acontecimentos”, porque também é feita de convívio entre irmãs. “A verdadeira novidade surge sempre da relação, porque a pessoa dá-se conta que a vida é muita rica e o coração das pessoas nunca acaba”. Faz tudo parte da “imensidão de riqueza” e da “juventude eterna” que Deus tem a oferecer.
“Eu acho que o Senhor continua a falar ao coração do homem”, continua a irmã, agora num tom de maior reflexão e profundidade. “Na comunidade de onde viemos havia 80 monjas e o noviciado nunca fechou desde que a comunidade foi fundada e chegou a Vitorchiano, em 1957”. E foi nesse sentido que Giusy Maffini aceitou partir para o planalto mirandês, para dizer “que a vida monástica está viva e que é uma proposta para hoje em dia, e que a comunidade cristã tem que continuar a existir e a mostrar o caminho”. Na Europa “secularizada”, vê “muitos sinais de esperança, porque a verdade é que ainda há uma Igreja viva e uma juventude ainda desejosa de encontrar caminhos”, mas teme que isso se possa perder se não houver “gerações fortes que comuniquem a fé”. E é isso que quer fazer aqui, em conjunto com Irene, Lucia, Deborah, Alice, Luce, Margherita, Sara, Augusta e Annunziata.
A alegria desta missão torna-se ainda mais óbvia quando, já perto das despedidas, chega à superiora uma mensagem de uma jovem. A pergunta? Se pode levar uma amiga para a acompanhar nos dias que tinha marcado no Verão Vocacional. Depois de uma breve conversa entre sorrisos sobre o que responder à jovem, é a irmã Irene que nos explica que é assim que estas coisas melhor funcionam, porque “uma amiga vai puxar outra, e talvez outra, e mesmo que descubram que a vocação delas não é esta, já podem falar da experiência a outras”.
Depois de almoço celebra-se a Hora de Noa, e regressa-se ao trabalho. Poucos passos nos separam do estaleiro onde trabalhadores constroem o mosteiro e igreja abacial que vai passar a acolher esses momentos. Entre o xisto da terra e o sol que aquece o ar, Giusy e Irene guiam-nos pelo espaço que cresce perante os olhos ansiosos das dez monjas. Apontam-nos para onde vão estar o claustro, a igreja, as oficinas, e mostram-nos o amendoal e o pomar que já as orgulha. A curiosidade arquitectónica leva a perguntar se o xisto também vai estar presente daquele lado. “Não. Serão dois espaços diferentes, separados. A hospedaria tem xisto para fazer a ligação com as casas desta zona. O mosteiro vai ser de granito, porque é um local nobre e resistente. São dois espaços separados: a cidade do Homem e a cidade de Deus”.
É ainda na cidade do Homem que as monjas voltam à oração, a de Vésperas, para agradecer a Deus os dons do dia, e, depois de jantar, a de Completas, como entrega ao Senhor antes do descanso nocturno, que chega às 20h.
É na cidade do Homem que Giusy, Irene, Lucia, Deborah, Alice, Luce, Margherita, Sara, Augusta e Annunziata esperam pela cidade de Deus, onde vão passar o resto da vida a transmitir a alegria do Evangelho e a trazer, esperam, vocações à Igreja portuguesa. Uma tarefa que não espera pelos espaços da Regra de São Bento para começar, não vivessem as trapistas numa “atitude contínua de receber a vida” e de aceitar o que lhes é apresentado. Talvez o terreno do interior, árido para tanto fruto da vida moderna, possa ser fértil para fazer brotar uma resposta às ansiedades de hoje.
Reportagem publicada na edição de 21 de Julho de 2022 do Igreja Viva.
Credits:
Texto, reportagem e fotos: João Pedro Quesado