Bispo Auxiliar em Braga desde 2016, foi em Outubro de 2019 que D. Nuno Almeida passou também a ser coordenador da Comissão de Protecção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga. Quase três anos depois, e num momento importante neste tema para a Igreja em Portugal, falou com o Igreja Viva sobre o trabalho e o tema dos abusos na Igreja.
Como é que tem sido o trabalho da Comissão de Protecção de Menores desde 2019?
A tarefa prioritária da Comissão tem sido acolher, apoiar e acompanhar as vítimas de abusos sexuais. Isso é claro. Desde o início, também tem sido também importante o trabalho de prevenção, organizando, na Arquidiocese, acções de sensibilização, de informação e de formação sobre a problemática dos abusos sexuais, dirigidas sobretudo aos padres e aos agentes pastorais que trabalham e que lidam com menores e pessoas vulneráveis.
A Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga foi criada pelo Senhor Arcebispo em Outubro de 2019 – ainda por D. Jorge Ortiga, dentro do prazo que o Papa Francisco tinha estabelecido. Tem sido uma experiência muito intensa e, como coordenador, julgo que é justo manifestar gratidão a todos os seus membros, porque assumiram, com muito dedicação e espírito de serviço, esta delicada e exigente sentido de missão, equilibrando com as suas profissões e vidas do dia-a-dia.
Temos experimentado os frutos de um trabalho em equipa, a partir da fé e conjugando os saberes de cada membro da comissão, para que haja um acompanhamento integral das vítimas e de todas as pessoas envolvidas em cada caso.
Como é que verificam se uma denúncia é, ou não, verdadeira? Que passos seguem?
À partida, é necessário – e por isso temos uma advogada na Comissão – cumprir sempre as leis civis em relação a crimes, indícios de crimes, etc. Depois, sendo uma instituição da Igreja, também temos que cumprir a legislação canónica. E também é preciso bom senso, no sentido de lidarmos com a presunção de inocência. Felizmente temos um regulamento elaborado pela própria Comissão, aprovado pelo Senhor Arcebispo, e esse regulamento dá-nos alguma segurança e tranquilidade nos passos a dar diante das situações concretas com que nos deparamos. Este regulamento está disponível no site da Arquidiocese.
À Comissão podem chegar queixas, denúncias ou pedidos de apoio e aconselhamento, o que também acontece. Em primeiro lugar, convém dizer que estas queixas podem ser feitas directamente através do endereço postal, do e-mail ou do número de telemóvel directos, que estão no site da Arquidiocese e num folheto distribuído pelas paróquias, assim como podem ser feitas junto de um membro da Comissão. Pode acontecer ser apresentada uma queixa ou denúncia a um responsável da pastoral diocesana. Se alguém se apercebe, tem obrigação de, imediatamente, avisar e comunicar à Comissão.
Ao receber uma queixa, denúncia ou pedido de apoio, temos um prazo máximo de cinco dias para agir e, atendendo às aptidões específicas de cada um dos seus membros e o caso, nomear um membro da Comissão para conduzir o processo, nomeadamente, escutar a vítima, ou quem denuncia, e prover às suas necessidades espirituais, psicológicas, jurídicas ou outras. Um outro membro é nomeado para servir de secretário, por assim dizer, no caso. Estas pessoas têm que ouvir toda a gente necessária, imediatamente, e se for preciso deslocar-se, devem fazê-lo, de forma sigilosa e com cuidado para que ninguém se exponha publicamente. Concluído o processo de averiguações, apresentam-nas ao colectivo da Comissão, e o relator final nomeado produz um relatório. O mais delicado é a fase seguinte, porque caso haja indícios suficientes da prática de crime de abuso sexual, é necessário fazer a denúncia às autoridades civis e eclesiásticas – no caso de ainda não ter acontecido. Estando em questão menores, cabe aos encarregados de educação, mas noutros casos, a própria autoridade eclesiástica deve fazê-lo.
O relatório final é entregue ao Arcebispo que, depois de analisar, lhe dará o seguimento conveniente, nomeadamente a eventual nomeação de uma Comissão de Investigação Prévia e comunicação à Congregação para a Doutrina da Fé, da Santa Sé. Essa é uma outra etapa, a da justiça eclesiástica. O resultado final tem sempre consequências duplas: como qualquer cidadão, é preciso responder perante a justiça civil, e poderá, depois de uma suspensão temporária preventiva, ser demitido, etc.
Depois da conclusão do processo, a Comissão, em particular o responsável e o secretário, continuarão a acompanhar a vítima e outros intervenientes, sempre que necessário, assim como agressores. A Comissão está constituída para dar apoio, orientação a nível psicológico, jurídico e espiritual, e tem a responsabilidade de abrir portas para que a pessoa chegue onde melhor pode ser acompanhada.
Estes passos parecem mais adequados a queixas sobre casos recentes. Se forem casos mais antigos, inclusive com possibilidade de terem prescrito, qual é o processo?
Nesses casos, em termos civis, não adianta enganar as pessoas, porque essa é uma possibilidade para casos mais antigos. Aquilo que damos é que, mesmo que seja uma situação de há 40 anos, para a vítima é como se fosse ontem. Não prescreve. Claro que a pessoa entende que já não é possível haver investigação criminal, mas o trauma permanece.
Há situações na Igreja em que não há prescrição, e em que não é o bispo a decidir, mas a Congregação para a Doutrina da Fé. O que as pessoas têm procurado é, sobretudo, em ambiente seguro e sigiloso, e de confiança – o que é complicado, até porque estamos no ambiente da Igreja e estes casos são feridas criadas no ambiente da Igreja –, a tal ajuda espiritual. Se são casos no presente, é preciso desde logo tomar decisões, principalmente havendo perigo dos abusos estarem a acontecer – mesmo que possa parecer injusto. É preciso haver uma suspensão preventiva para se poder apurar e, nesse caso, quem faz a investigação é a Polícia Judiciária. Esta cooperação demorou a chegar. Mas vivemos tempos novos, e não podemos voltar atrás. Não podemos criar um espírito que depois leva ao silêncio e a que estes problemas se perpetuem.
Nesses casos antigos, as pessoas também podem vir à procura de um reconhecimento de erro e de culpa?
Sim. As pessoas procuram que se acredite... Até há três anos eu nem sequer percebia, tinha uma ideia muito vaga destas coisas. No passado, as pessoas acreditavam muito mais no pároco, no catequista ou no chefe de escuteiros do que numa criança. Felizmente, isto mudou. Com técnicos na Comissão, temos forma de perceber se alguém inventa ou chega com outras intenções, mas isso são coisas residuais. As pessoas precisam de ser acolhidas e a nossa intenção... O coração de alguém que foi ferido, que foi abusado, é terra sagrada. Nós temos que ter cuidado extremo na forma como lidamos com o caso, até nas perguntas que fazemos.
Quantas denúncias é que a Comissão já recebeu?
Não são muitas, e daí, também, a importância da divulgação. Desde o início, tratamos quatro situações. Se compararmos com o número de pessoas que recorreram à Comissão Independente, faz-nos pensar. Foram situações muito diversificadas, e estes quatro casos estão a seguir as etapas e procedimentos previstos na lei civil e na canónica.
Se no presente acontecem abusos ou alguém tem conhecimento de abusos e fica em silêncio, está a impedir o trabalho da Comissão Diocesana - mais próxima - e da Comissão Independente. A primeira lição que devemos aprender e ensinar é a de não guardar silêncio. Isto é a chave. Quem cala nunca se protege a si mesmo, só está a proteger o agressor. Devemos reconhecer as omissões, a negligência que, pelo silêncio, cultivamos na Igreja ao longo destas décadas, e precisamos de pedir perdão a todas as vítimas. Não podemos manter a impunidade nem o silêncio. Qualquer um de nós na Igreja, seja bispo, seja padre, seja catequista, quem lida com crianças também é cidadão, e mantém as obrigações de cidadão. Há, sim, que aprender a saber ler os sinais de alerta e tudo fazer para tornar a igreja e suas comunidades seguras para as crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis. Para mim tem sido uma descoberta, e a minha atitude agora é muito diferente comparada com há uns anos.
O mais importante é prevenir. Termos que lidar, depois, com queixas e denúncias, é dramático, porque já houve vítimas, já houve pessoas que ficaram com a vida condicionada para sempre. Por isso tudo o que pudermos fazer preventivamente é importante, como saber ler os sinais de alerta para tornar a Igreja e as comunidades seguras. Sem uma relação de confiança, a Igreja entra numa espécie de implosão.
O silêncio é o segundo maior inimigo das vítimas de abusos. Temos que agradecer às pessoas que tiveram a coragem de quebrar o silêncio, e passar esta mensagem de que, no presente, haja muito mais atenção e não se demore na comunicação, porque pode-se evitar o mal.
Já teve a oportunidade de falar com alguma vítima?
Sim. Aliás, nós nem tivemos tempo, mal a Comissão foi anunciada, a prioridade foi receber e, ainda não tendo o regulamento pronto, felizmente contamos com pessoas experientes em situações delicadas. Para mim... Não é que tenham sido muitos encontros, mas os que houve marcaram-me e mudaram-me interiormente, e na maneira de olhar com todo o respeito, caridade e disponibilidade. Fizeram-me compreender que não há pior tragédia do que viver situações dramáticas e traumáticas na mais completa solidão, a viver-se o receio de não ser levado a sério por cima do trauma. Não há palavras que possam exprimir o sofrimento dos que são abusados sexualmente, sobretudo quando são menores e completamente indefesos. Arrepia pensar nisto, mas é uma realidade tão incontornável que vale a pena refletirmos sobre ela para ajudarmos os nossos filhos, netos, sobrinhos, alunos, amigos e filhos de amigos a precaver-se contra potenciais abusadores.
Quando o padre Zollner esteve cá, procurou trazer-nos precisamente testemunhos, como o Papa fez quando chamou os presidentes das conferências episcopais a Roma. Um dos testemunhos que o padre Zollner contou foi o de alguém que foi abusado num país europeu e que depois comunicou isso mesmo à diocese. Essa diocese enviou-lhe uma carta em que dizia, entre formalismos, 'recebemos a sua queixa, respeitamos, porém tudo isto já prescreveu, por isso passe bem'. Esta pessoa foi uma das que esteve com o Papa no encontro em Roma, foi a última recebida pelo Papa. Enquanto esperava estava muito ansioso e saiu por algum tempo, e comprou um postal com a Pietá. Quando chegou ao pé do Papa, estava cansado e começou a gritar. Ninguém sabia o que fazer, mas o Papa simplesmente ouviu e depois reparou no postal e pediu se podia ficar com ele para todos os dias rezar por ele. Para esta pessoa foi muito maior o sofrimento causado pela resposta da diocese do que o causado por algo que tenha acontecido. Passado um ano, voltaram a encontrar-se, e o Papa tornou claro que se lembrava dele todos os dias. Depois daquela frieza burocrática, encontrou no Papa o rosto de uma proximidade importante.
Vários especialistas, precisamente como o Pe. Hans Zollner, têm referido a importância da prevenção neste assunto. O que é que a Comissão e a Arquidiocese estão a fazer nesse capítulo?
O padre Zollner veio há uns anos, convidado pela Universidade Católica, ainda antes da formação da Comissão. É uma pessoa muito directa e concreta. Nessa altura ficamos com o contacto dele, e fomos procurando pedir ajuda, expor dúvidas que tínhamos, até porque não havia nenhum modelo. Foi nesse contexto que fomos percebendo, primeiro, que não é possível anunciar e testemunhar o amor de Deus e a alegria do Evangelho em comunidades, paróquias e movimentos onde as pessoas não se sintam respeitadas e seguras. Para além disso, tomamos consciência do que disse o Papa Francisco, da necessidade de “desenraizar da Igreja a chaga dos abusos sexuais contra menores e abrir um caminho de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados”.
É decisiva a formação. Por isso, tivemos uma importantíssima Jornada de formação para o clero, orientada pelo Pe. Zollner. Foi um dia inteiro, incluindo um almoço de trabalho, e na altura a sessão não foi aberta ao público precisamente para todos ali saberem que são padres e poder tratar do assunto de forma mais simples e veemente. Foi como afinar as cordas de uma viola... Sem essa afinação, andamos um bocado iludidos e, sobretudo, não andamos à altura da vigilância que devemos ter em relação a este problema, que nos compete a nós na Igreja.
Mais tarde, já em sessões abertas em dois sábados diferentes, tivemos entre nós elementos do programa “Cuidar” da UCP e do Serviço de Proteção dos Jesuítas, que nos ofereceram uma profunda e iluminante reflexão, importante na criação da cultura do cuidado e da prevenção.
Para além disso, elaboramos um folheto informativo com base num do Patriarcado de Lisboa, e ele tem sido distribuído, pelas paróquias e movimentos, como forma de formação e informação sobre o drama dos abusos sexuais, constam os contactos da Comissão, e-mail e número de telemóvel.
Temos consciência de que é preciso fazer muito mais, nomeadamente um manual de boas práticas e tornar obrigatória formação anual para quem trabalha pastoralmente com crianças e pessoas vulneráveis. Mas, felizmente, hoje em dia as coisas mudaram e existe uma maior atenção e capacidade de interpretar os sinais de alerta. É importante que transmitamos às crianças e jovens que ao menor sinal de estranheza comuniquem com alguém. Ou seja, por favor, evitem o silêncio! O silêncio impede que se possa actuar.
Esse silêncio pode estar relacionado com medo.
Sim, sem dúvida. É difícil... Até porque, muitas vezes, o abusador era uma pessoa de confiança, até porque ao abuso sexual está ligado um abuso de poder, o uso pervertido do poder de uma responsabilidade. Portanto, as pessoas têm medo, sim. Ainda outro dia, na sessão em que estiveram os doutores Pedro Strecht e Daniel Sampaio, explicaram que, em relação aos rapazes, acaba por pairar a ameaça de espalhar um rumor de homossexualidade no caso de se fazer queixa. Isso cria uma coacção que amplia ainda mais o sofrimento.
Como é que os seminários podem preparar os novos diáconos e sacerdotes para prevenir os casos de abusos?
Cada equipa e cada seminário terá as suas respostas, dependendo do ambiente onde vive, mas há normas para a formação inicial e permanente da Santa Sé desde 2016. Os tópicos são simples. Em primeiro lugar, é precisa toda a atenção para que quem tem tenha cometido abusos não avance para o sacerdócio. Depois, é preciso muita atenção também à eventualidade de seminaristas que foram abusados, na família ou no ambiente do seminário. É preciso acompanhar devidamente essas pessoas. Também é explícito que é preciso incluir no programa de formação, tanto inicial como permanente, aulas específicas sobre a protecção de menores e pessoas vulneráveis. Penso que foi um sinal muito positivo o facto de os seminaristas das diversas dioceses que vivem em Braga terem participado nas acções de formação organizadas pela Comissão de Protecção.
Com tudo o que já falamos, torna-se um pouco mais claro que o trabalho das comissões diocesanas passa mais pela formação de padres, religiosos e leigos do que pela investigação?
Sim, a nossa missão não é investigar. É acolher, sinalizar, apoiar e procurar, por todos os meios, sensibilizar e formar. Não podemos invadir as competências do Ministério Público ou do Tribunal Eclesiástico.
O Papa Francisco estabeleceu um prazo para que em todas as dioceses do mundo se criassem as Comissões de Proteção e balizou, claramente, a sua acção: Acolher, escutar e aconselhar quem tiver sido vítima de abuso; acompanhar todas as pessoas envolvidas, tanto no processo de abuso como na sua denúncia; promover a informação e a formação sobre a problemática dos abusos sobre menores e adultos vulneráveis e sensibilizar os agentes pastorais e as instituições para a necessidade de desenvolver uma cultura de cuidado e prevenção de qualquer tipo de abuso. Estes são objectivos muito exigentes, e não faria sentido que a acção da Comissão tentasse invadir o campo da justiça civil e da justiça eclesiástica.
É preciso que continuemos a formar a consciência de todos, alertando para a gravidade dos abusos sexuais. O mais importante é que, assim como já houve campanhas de prevenção rodoviária muito eficazes, de tolerância zero, é nosso dever tudo fazer para que também a Igreja seja um caminho seguro e nela haja tolerância zero para abusadores e para encobridores.
A criação da Comissão Independente veio trazer mudanças às comissões diocesanas?
A Comissão Independente veio completar o quadro, fazendo o apuramento histórico. Mas sentíamos que muitas pessoas quererão o anonimato, e outras quererão algum distanciamento do ambiente em que o abuso aconteceu. As Comissões Diocesanas são grupos de trabalho do Bispo de cada diocese. A Comissão Independente, como o próprio nome indica, tem autonomia para estudar este problema com profundidade e propor medidas preventivas, e o único compromisso é o prazo de um ano para apresentar conclusões. Se juntarmos o Grupo Coordenador Nacional das Comissões Diocesanas, temos agora um quadro mais completo para que se estude, acolha, acompanhe e previna o drama dos abusos sexuais na Igreja. Hoje há condições para que ninguém fique em silêncio.
O mediatismo mais regular que esta Comissão Independente deu ao assunto, mesmo sendo desconfortável para a Igreja, é benéfico porque mostra que a Igreja está disponível.
Tocas num aspecto decisivo. Sempre que anuncio acções de formação ao clero, uso o nome da rubrica do programa das manhãs na Renascença, “Extremamente Desagradável”. Isto faz doer, mas este percurso está no início. A Comissão Independente começou por divulgar nos ambientes fora da Igreja, em todo o lado, para evitar que daqui a um ano alguém diga que queria falar e não sabia que podia. Isto não é uma questão de curiosidade, é uma questão de percebermos a realidade, de percebermos como é que a vivência em Igreja permitiu uma situação destas, precisamente para se tomarem medidas e criar as comunidades sãs e seguras. Pode criar alguma perplexidade, mas vai ter que ser, e todos nós podemos colaborar na divulgação.
A Igreja deve retirar, preventivamente, da actividade pastoral e sem hesitação, o abusador identificado, mas não o deve abandonar, porque "a redenção é sempre possível", embora só com a "admissão de culpa".
Na Suíça existe um projecto que permite às vítimas de abusos participar em programas voltados para a reconciliação com os seus agressores. Considera que há hipótese de procurar seguir esse exemplo em Portugal e procurar essa reconciliação?
Nós vamos ter que chegar aí. Infelizmente ainda não temos possibilidade disso, porque implica criar uma estrutura específica e perceber os recursos que existem em várias áreas. Precisamos de conhecer estas boas práticas em pormenor antes de avançar também em Portugal com percursos de cura e reconciliação, e vou procurar perceber melhor esse projecto na Suíça.
É sempre muito complicado conjugar a justiça, a verdade e a misericórdia. Nós não podemos abandonar os agressores, mas isso também não pode significar faltar ao respeito às vítimas ou desvalorizar o problema. O alegado agressor não pode ser abandonado. O primado é o da justiça, claro, mas não pondo de lado a possibilidade de redenção, de perdão, reconciliação e cura. A Igreja deve retirar, preventivamente, da actividade pastoral e sem hesitação, o abusador identificado, mas não o deve abandonar, porque a “redenção é sempre possível”, embora só com a “admissão da culpa” por parte do criminoso. Como discípulos de Cristo, acreditamos que uma pessoa se pode transformar, ninguém está irremediavelmente perdido. Há sempre essa possibilidade, mas tem de passar pela capacidade de admitir a culpa e pelo difícil equilíbrio entre a justiça, verdade e a misericórdia.
Perante os indícios ou provas de abusos, no passado houve desvalorização, encobrimentos, transferência de sacerdotes de um lugar para outro, ingénuas reparações privadas na ilusão de compensar o dano sofrido pelas vítimas. Foram, de facto, as vítimas que começaram a fazer ouvir a sua voz, a querer recuperar o tempo perdido por causa de sentimentos de culpa, de vergonha e de raiva, frustração e de escândalo, sobretudo por ver estes mesmos homens e mulheres seguirem em frente com a sua vida, muitas vezes numa ascendente carreira.
Na Igreja e suas instituições não podemos tolerar uma espécie de conspiração do silêncio, pois o silêncio mata emocionalmente tanto como os crimes dos próprios criminosos. Temos e teremos, certamente, dias duros, de via purgativa, mas acreditamos que marcam uma nova era. Mas há que reforçar uma nova consciência sobre o poder de cada um para saber ouvir e ler os sinais de alerta, pois não é possível manter a impunidade nem o silêncio.
Credits:
Entrevista e fotos: João Pedro Quesado